de João César Monteiro
estreia em Lisboa, a 6 de Maio de 1982
Filme assumidamente idealista, jogando sem hesitações no campo de um inconsciente colectivo de cariz junguiano, simulando ir às raízes submersas da memória portuguesa para encontrar nelas uma universalidade de referências. Silvestre é uma obra que tinha várias condições para provocar a recusa dos sectores mais materialistas da critica portuguesa - e, contudo, por motivos que seria curioso analisar, acabou por suscitar entusiásticas análises à beira do êxtase. São estes os pitorescos caminhos de um cineasta que de sujeito convicto de uma intratável marginalidade se converteu em objecto (resignado ou divertido?) de um discurso unanimista.
Silvestre recorre a duas narrativas do Romanceiro («Donzela que vai à guerra» e «A mão do finado») e tenta articulá-las num único percurso narrativo, segundo uma pista já explorada por Aquilino Ribeiro. João César Monteiro optou por um tipo de realização que confere ao filme um estatuto que o aproxima da banda desenhada: cada sequência é fundamentalmente a simplificação de uma realidade inacessível (o que é muito visível nas cenas da batalha, mas constitui, no entanto, a maneira dominante ao longo de todo o filme). Esta noção de simplificação é fundamental: ela determina o teor das falas (que são simplificações arquetípicas de uma realidade psicológica tornada universal), as características dos cenários, o andamento da narrativa, ou mesmo o estilo de representação (que é sempre, como se pode ver com Jorge Silva Melo, que leva o processo a um limite quase intolerável, uma representação de uma representação}. Tal como na banda desenhada, o que se vê é apenas uma amostragem em que o essencial fica condensado. Esta necessidade de simplificar (amplamente inspirada no Perceval de Rohmer) poderá servir de explicação para o que de melhor e o que de pior se encontra neste filme: o melhor ocorre quando a simplificação condensa, o pior quando ela empobrece e reduz. O grande problema estético de Silvestre resulta de o cineasta não ter sabido gerir equilibradamente esta economia.
Daí a razão de ser de determinadas objecções que, verificando que o filme se constrói com sequências filmadas em cena de tipo teatral, com sequências concebidas para o recurso à projecção frontal e com outras realizadas em cenários reais, o acusam de uma arbitrariedade de procedimentos e de uma dispersão de intenções. De facto, se condições de ordem prática forçaram João César Monteiro ao uso de diversas técnicas de filmar, teria sido importante subordinar a lógica da sua distribuição à lógica da simplificação a que o filme se submete. Dizer apenas que se «jogou na heterogeneidade» não parece ser argumento suficiente.
É precisamente porque o filme trabalha simplificadamente uma matéria simplificada que ele fornece com extrema facilidade o material que permite a leitura directa em termos psicanaliticos - e assim esta leitura atravessa o filme como se nele não houvesse corpo ou sujeito, mas apenas uma placa translúcida onde o inconsciente se inscreve numa grafia primordial. Dai o encanto e a ambiguidade de abordagens tão interessantes como aquela a que José Gabriel Pereira Bastos se dedicou (nas páginas de JL, n.° 33).
Para Pereira Bastos, estamos perante «a cena do inconsciente que nada recusa, porque amoral e isenta de contradição». Vamos assim encontrar todos os sinais do desejo incestuoso do pai de Sílvia/Suzana - para se vir a consumar na figura do Romeiro. Ou seguir as várias clivagens (de Sílvia a Silvestre, entre Sílvia e Suzana, entre o masculino e o feminino, entre mãe e filha, entre virgem e não- virgem, etc....) que farão do filme, no dizer do comentador, «um deslizante labirinto caleidoscópio». Ou decifrar o simbolismo da desvirginização e da castração no episódio da «mão do finado». Ou explorar as virtualidades polissémicas do elemento «mão». Ou recorrer ao mito de Osíris e Isis para a interpretação da cena final.
O resto são as qualidades e defeitos que já encontrámos em Veredas. Por um lado, um gosto excessivamente fácil pela superfície mais cantante das imagens. Ou um acentuado desequilíbrio na direcção de actores: se Maria de Medeiros e Luís Miguel Cintra constituem casos notáveis de interpretação, outros participantes (como Xosé Maria Straviz, Raquel Maria ou Cucha Carvalheiro) comprometem irremediavelmente determinadas cenas. Por outro lado, uma enorme sedução pelo alardear das referências culturais, que funcionam quase sempre mais como escudos de protecção do filme do que como momentos de verdadeira intensidade estética.
Texto de Eduardo Prado Coelho
In “Vinte anos do Cinema Português (1962-1982)”
Biblioteca Breve / Volume 78. 1983.