QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO /1970

UM PROVÉRBIO CINEMATOGRÁFICO

 

Sapatos começa com "filme no filme", o que se pode ler de duas maneiras:

a) aproveitamento das contingências da produção (leia-se a "Certidão" de João César Monteiro), confirmando a proverbial sabedoria popular de que ele há males que vêm por bem;

b) uma referência ao carácter especular do cinema. Para que não se pense que isto é prosa de pasquim cultural sempre acrescento que ao escrever especular estava a pensar nos espelhos paralelos de uma barbearia, que multiplicavam a nossa imagem até onde a vista alcança, e nas bonecas russas que têm uma e outra e outra boneca dentro. Também se pode pensar na Caverna de Platão, mas isso é uma coisa que, como as orações ao deitar e ao levantar, se pensa pelo menos duas vezes ao dia. pelo que mais vale pensar noutra coisa.

Fim do "filme no filme", genérico, branca (que era para ser negra, só que da intenção ao fenómeno vai película e laboratório) com música, plano de conjunto no Martinho da Arcada, grande plano da barata que cai no copo e, na companhia do Godard mais Nouvelle Vague que se conhece procede se a execução de urgente expediente, sem o que certas ambições afectivas tendem para o zero ou infinito. O mais bonito desta digressão - e eu acho muito mal feito, até porque é deixar-se ir pelo mais obvio, falar de abjeccionismo a propósito dos filmes de João César Monteiro quando neles (os filmes) e sempre do conhecimento da beleza que se trata, o que me faz acreditar que faço muito bem dizer bonito como quem diz uma coisa mais secreta - o mais bonito, dizia eu é o modo de entrar e sair de campo, sobretudo no plano do patamar da casa do falecido Almirante, quando Mário sai de campo ao mesmo tempo que entra feminino braço e um par de sapatos; o rapaz volta a entrar e puxa para dentro de campo sapatos e sopeirinha. É um plano sem mácula: com inteira verdade aí esta aquilo a que costumamos chamar alegria.

A segunda parte mostra, mais do que relata, o encontro de Lívio com a mulher amada sugerindo-lhe com subtileza a viva decepção do encontro. A "segunda parte" é o negativo da "primeira", carregadamente romântica, dando a desfrutar o espectáculo da irreconciliação  Cito o autor :"Digamos, para simplificar, que Lívio só poderá reconciliar-se consigo próprio em termos estéticos; só a criação poderá compensar a sua extrema fragilidade e restituir-lhe a 'voz canora' o olhar de Orfeu "

 

M .S. Fonseca

Publicado pela Cinemateca Portuguesa, a 25 de Abril de 1999