Nos anteriores filmes de João César Monteiro viajava-se bastante para o interior e para o anterior. Os personagens carregavam culpas velhas, pecados de pais e mães ou de outras famílias mais ou menos sagradas. Eram longas as suas peregrinações por tempos e espaços de antanho . Velhos contos portugueses, velhas contas portuguesas. É possível que a memória me traia, mas ao correr da pena, os planos de mar de que me lembro eram de ondas e rebentação ou (Que Farei Com Esta Espada?) os planos dum Tejo brumoso onde surgia o barco de Nosfaratu.
A única excepção relevante (obra que, de insólito modo, rima algures com a que vamos ver) é o primeiro filme de João César Monteiro: Sophia. Não terei hoje nem tempo nem espaço para falar destas rimas e por isso me limito a acentuar as dissonâncias. Nessa obra, era Sophia de Mello Breyner Andresen quem conduzia o realizador ao Algarve onde agora voltou e ao Mediterrâneo clássico e efásico. O realizador opunha alguma resistência àquela luz (a preto e branco) e aos mares novos de Sophia.
Dezassete anos depois, regressa ao mar e ao sul. Mas a viagem é outra e João César Monteiro não vai mar dentro, nem nenhum dos seus personagens. À Flor do Mar (belíssimo título) quer dizer qualquer coisa e o que vimos neste filme é o que o aflora e sobre ele desliza, sem mergulhos nem conchas nem corais. Um dia, Robert Jordan deu à costa com uma ferida superficial, num desses barcos a que há quem chame "lifeboat" . Fazia sol e quente e mais parecia transportado pelas águas do que perdido nelas. Nascimento de Eros sem iras de Poseidon. O outro veleiro donde vinha chamava-se Angelus, "estranho nome para um barco" ou "bom nome para um barco". Vemo-lo, luminoso e branco, numa imagem que Sara associará à felicidade. Só no fim do filme, o veleiro se volve em navio fantasma, quando só resta "aprender a gastar a felicidade que nos resta" (ou a infelicidade) e quatro janelas sucessivamente se apagam, antes que o écran escureça por completo, no que é o mais belo plano deste filme. O resto é postfácio. Tudo fica nesse "petit pan de mur jaune" ou, se se preferir uma citação cinéfila em vez de uma citação pictórica, nesse plano dos Amantes Crucificados de Mizoguchi, quando uma luz também se fecha sobre a partida dos amantes.
Mas se a superfície e o fascínio deste filme sem volumes (superfície do mar, superfície das casas, superfície dos corpos, tão à flor da pele como à flor do mar), o apelo dos subterrâneos não deixa de se inscrever nele. Se é a superfície do corpo de Laura, de fato de banho preto, sem alças, o pescoço muito deitado para trás, que ficará na memória associada à aparição de Roberto, o primeiro confronto de corpos e luzes entre ambos dá-se noutra praia, entre grutas e corredores. Há crianças que de noite chamam os morcegos e há um poço no jardim daquela casa, escura por fora e branca por dentro. E, antes de se ir oferecer a Robert, noutro plano pasmoso (braços pendentes, corpo tremente), Rosa debruça-se nesse poço e pede às águas do fundo que a levem para longe, muito longe dali.
Mas mesmo quando invocam as catacumbas ou amaldiçoam a luz ("esta luz animal" como lhe chama Sara) os personagens, todos eles, são guiados pela luz ou a ela aspiram. Talvez não tanto à realidade dela, com à ideia dela, ideia ou ideal platónico como para o tão citado pintor de Arezzo, Piero Della Francesca. Mas em Piero não há grandes planos e, neste filme que foge tanto deles como de qualquer subjectivização do olhar, o grande plano surge como figura de demarcação da impossibilidade de atingir essa escala. Laura, que mais a invoca, não é criatura do Borgo San Sepelcro mas de Roma. Não é a Virgem de Piero, mas uma mulher de Bronzino ou Pontormo, pintada na luz de Roma e, do maneirismo italiano, uma luz dramática, pois que a manhã da criação foi também a manhã da ferida.
À flor do mar, perpassa a luz da perfeição e da "absoluta consonância" que seria a luz de Piero, como perpassam, os vários Roberts ou Robertos onde não podemos voltar (Jordan, Rossellini ou Browning), mas tudo isso ou todos esses são ideias sem materialização possível. A luz de Piero está para este filme como a musica de Bach que nele se ouve. É um apelo, não é uma descrição. Os humanos são demasiado indiscretos para elas. E a consonância parece só existir nas naturezas mortas (donde, a importância delas e do tema da comida neste filme) ou então (outra sequência capital) noutro décor, quando Laura está na "boite", entre encarnados.
Dou um exemplo para parecer mais claro; há a sequência dos melões e depois o beijo de Robert no pescoço de Laura. Esta afasta-se e vem sentar-se diante do espelho, no plano deste filme que mais expressamente reenvia aos filmes anteriores de César Monteiro. E é um plano fabuloso. A luz é vagamente escura e recomeça-se a ouvir o adagio da Sonata de Bach. A música torna-se mais forte e a luz também, até o plano ficar todo azul, dum azul quase branco. Mas quando se espera a "explosão", tem-se o corte e o écran fica todo negro, no silêncio. Quando voltamos à imagem, a tonalidade recuperou-se e Robert Jordan volta enquadrado na janela, contra o mar. A vida do impossível é muito efémera e só se pode esquecer uma boca na boca de outra mulher.
Laura não é Ifigénia nem Panélope, como Robert não é Teseu nem Ulisses. O homem de brinco na orelha, nascido numa macieira, se é associado a esses mitos, é -o também a outros mais nocturnos e menos solares. Como o mito do Virgílio, a que Sara permanece ligada naquela casa incestuosa e que talvez reencontre quando, na sua reaparição como Norma e como Callos, vestal e operática, chama em "off" Jordan, Robert Jordan e o esconjura a não olhar para trás.
Mas, neste filme romântico (e João César Monteiro é o nosso único grande cineasta romântico) é já muito tarde para esse apelo. O vento não podia ser suave (como no "terzettino" do Cosi que se ouve quando Laura voltada sua manhã da criação) e já sabemos que Robert não voltará da última viagem. Como as pinturas de Virgílio, também as suas peregrinações ficaram interrompidas, lugar do sombras em que pistolas e poetas usam o mesmo nome.
Por enquanto só podemos ver tudo filtrado por um cristal como nasce- último e fabuloso plano de Manuela de Freitas, "trompe 1'oeil" da luz e do pintor que antes ela evocara para as crianças.
Por estranhíssimas coincidências (mas haverá coincidências?) Piero Della Francesca aparece nos dois últimos filmes portugueses aqui estreados (estou a referir-ma a Mon Cas de Manoel de Oliveira) como metáfora da unidade impossível. Em Oliveira, na Cidade Ideal. Em João César Monteiro na "luminosidade casta e cristalina" dos frescos de Arezzo. Só o olhar com que o olham (e nos olham) é completamente diferente. Por alguma razão, o que num é palco, noutro é superfície ou, dito de outro modo, o que num é drama antes de ser terra noutro é terra depois de ser drama.
João Bénard da Costa
Publicado pela Cinemateca Portuguesa a 2 de Outubro de 1986