Entrevista de Manuela Paixão a João César Monteiro.

Publicado no Diário de Notícias a 13 de Setembro de 1992

   

 O último «mergulho» de César Monteiro

 

 Dois anos depois do Leão de Prata, o realizador fala em Veneza do seu último filme

 

Manuela Paixão

Em Veneza

 

IRÓNICO, afirmando que fazer filmes deve ser um momento de divertimento, senão fazem-se outras coisas, como por exemplo lavar a loiça, João César Monteiro encontra-se pela segunda vez em Veneza, uma cidade que ele ama e que o ama.

  Há dois anos, com Recordações da Casa Amarela, o realizador português venceu o Leão de Prata, o segundo prémio do certame. E, possivelmente, com O Último Mergulho prepara-se para representar Portugal nos festivais de Montpellier, em  França, e de São Francisco, nos EUA. Alegre, afronta com enorme ironia uma plateia de jornalistas intimidados com O Último Mergulho  e as suas metáforas e alusões.

 «Se não gostasse de fazer filmes, faria outra coisa: é esta a mensagem que dou ao meu filme quando o velho Elói se mata, deitando-se ao Tejo, depois de dois dias de copos, putas e festejos de Santo António. Queria dizer que, antes de morrer, é necessário divertirmo-nos como doidos», disse-nos em Veneza João César Monteiro.

   DN — «Recordações da Casa Amarela» não teve uma distribuição fácil em Itália, apesar de ter vencido um Leão de Prata em Veneza. Como foi no reste do mundo e em Portugal ?

   João César Monteiro -  Mais ou menos o mesmo. Mas também não era esse o ponto. Mesmo que seja curioso. Porque, no final de contas, é só um filmezinho...

   DN - «O Último Mergulho» apresenta duas cenas de compreensão me nos imediata, um bailado no pátio do Castelo de São Jorge, com uma dança de Salomé, seguida de uma mais ou menos idêntica, mas sem música. Qual é o seu significado e  porque duram tanto, sobretudo se não é sequer um bailado artístico?

   JCM — Não duram assim tanto.  Apenas  11  minutos. Para mim não é muito. Além de que eu não consigo cortar o que filmei só porque é longo. Não toco nunca naquilo que achei que devia filmar. Quanto ao segundo bailado sem música, a razão é muito simples. O som não era necessário, era de facto inútil. É uma dança interior. A mim, o que me interessava era filmar os movimentos do corpo de uma actriz que dança, e que, nessa altura, tem uma relação diferente com a luz.  Tudo porque Fabienne Babe, que no filme é muda, procura a luz.

   Eu adoro o tempo que passa, adoro ver passar o tempo.  Não me parece que 11 minutos de dança seja muito.

   DN — Nos seus filmes os personagens cumprem sobretudo percursos, ao longo das ruas. Em «O Último Mergulho» percorrem Lisboa, uma cidade linda, de noite. Porquê?

   JCM - Porque eu faço cinema. Cinema verdadeiro. Onde há movimento. O movimento que existe, por exemplo, não só nos percursos e passeios pelas ruas de Alfama mas também na voz que no final do filme, num ecrã totalmente negro, recita em francês e em português os poemas de Hyperion, de Hölderlin. É o meu lado estético.

  A voz tem movimento, cor. Mas sei que, por exemplo, também irrita e chateia o espectador. Mas ele pode sempre sair...

  DN — Mas porquê essas citações poéticas no final do filme?

  JCM - Hölderlin é um poeta que eu amo muito. Pelas suas ideias, um pouco comunistas, um pouco anarquistas. Podemos dizer que as citações constituem uma espécie de manifesto cinematográfico...

   DN — Como nasceu a ideia deste filme?

   JCM — Este filme não estava previsto ou planeado.  No princípio havia só o pedido do meu produtor para contribuir para uma série de curtas metragens com 20 minutos cada uma. O projecto que eu escrevi, e que era muito mais sofisticado e detalhado, transformou-se depois em filme. Acontece muitas vezes assim...

   DN - A propósito de esperanças não mantidas, há alguma alusão específica no facto de o hotel onde se encontram as putas com Elói e Samuel se chamar Hotel 25 de Abril, tendo um cravo na tabuleta?

  JCM - Sem dúvida. Até porque este filme é uma pequena espiral, ou pelo menos desenrola-se segundo uma espiral. É barroco puro, por isso mesmo tem música de Bach. Nós, latinos, sobretudo nós, portugueses, lusitanos, do mesmo modo que os italianos não conseguem não ser comediantes, não fazer comédias, nós, dizia eu, funcionamos num sentido vertiginoso de espiral. Ninguém nos consegue segurar.

   É por isso que eu, quando faço um filme de que gosto (são aliás os únicos filmes que faço), não consigo parar. Entro nessa vertiginosa espiral.  Sigo os conselhos do grande mestre do cinema, Rossellini, que dizia que o dinheiro não serve para comer mas para fazer filmes...

   DN — Porque é que o velho, depois de ter estabelecido uma relação tão simpática com Samuel, depois de duas noites com ele, se atira ao rio?

   JCM — O velho morre, sim. O jovem, não. Porque encontrou uma belíssima rapariga, Esperança. Eu também faria o mesmo no caso do jovem, porque não é todos os dias que se encontra uma rapariga assim tão bela...

  DN — O que acontece à velha paralítica, que nunca vemos, só a ouvimos lamentar-se, imaginamos que ela esteja na cama?

  JCM — A velha paralisada tem reumatismo. É uma grande chata. O seu personagem é muito típico. Eu queria dizer que essas pessoas existem, mas não têm qualquer tipo de peso.

  DN — Mas no final qual é o significado do seu filme? Porque o fez?

  JCM — É muito simples. Quando se filma alguma coisa, fazemos a velha história de Lumière: o combate com o real, com as coisas que estão ali.  Algumas  vezes  enganamo-nos. Eu gosto de ver filmes. Mas filmes que sejam cinema, e não fogo-de-artifício. A maior parte dos filmes hoje produzidos são só merda... merda... Mas talvez eu já esteja a divagar...

   DN - O que pretende obter do cinema?

   JCM - O que pretendo obter do cinema? Procuro obter aquilo que está para lá do visível. Filmar é fazer ver o que não é uma realidade visível. Por exemplo, filmar o Sol é impossível. Quem o fizer pode ficar cego. Mas em contraluz é possível ver e fazer ver a luz. Para mim é uma questão de ética cinematográfica, porque o olhar traz sempre consigo uma violência.

   Definindo-se como um cineasta literário, João César Monteiro impressionou muitíssimo os seus intérpretes estrangeiros, nomeadamente Fabienne Babe, a protagonista, pelo seu poder de criatividade, imprevisibilidade e capacidade de improvisação:  «O Último Mergulho é um filme diferente de todos os que fiz até aqui. Pude fazer tudo, não houve restrições. Pude até divertir-me. Era estranho, porque não havia texto, eu não precisava de falar,  era  como  um  presente para mim, fazer um filme deste modo. Eu estava pronta para fazer tudo. O divertido era também que, quando se inventava, tinha de se inventar em poucos minutos.»

 

Publicado no "Diário de Notícias" a 13 de Setembro 1992