Entrevista de Rodrigues de Silva a João César Monteiro.

Publicada no Jornal de Letras a 22 de Setembro de 1992

 

 

“O Último Mergulho” de João César Monteiro.

O Sagrado e o Profano

 

Ele chegara há doze horas do Festival de Veneza, onde o seu filme estivera a concurso. Daí a outras doze iria apresentá-lo, na Cinemate­ca, em antestreia nacional. O filme é <O Último MerguIho> e sobre ele João César Monteiro fala, longamente, nesta entrevista, gravada em sua casa. Mas não só sobre o seu filme, também sobre mil e uma coisas, todas elas indo dar, fatalmente, ao cinema. Fatalmente, como se o cinema fosse - e para ele é - o sagrado, que tantos ele acusa de profanarem. As respostas têm a marca do autor. Que ninguém se admire, pois, porque para este homem, para este realizador para quem o cinema é a vida e os seus filmes o seu próprio corpo, o seu próprio espírito, cada resposta está marcada - hoje - pelo tempo e a ira. E é um espantoso testemunho!

 

 

«Jornal de Letras» - Parabéns: este, para mim, é o teu melhor filme. Não agradeças, que não é o teu género, e passemos à frente. Diz-me: de acordo com a, já remota, ideia inicial de «O «Último Mergulho», o filme acabava com um dos candidatos a suicida a suicidar-se mesmo, en­quanto o outro lhe fazia um manguito. Afinal, no filme, o tipo que não se suicida, em vez do mangui­to, apaixona-se. Porquê?

 

João César Monteiro - Ainda assim começo por agradecer, porque ando no chamado período de boa educação. Quanto ao filme, é uma longa história. Inicialmente, começou por ser uma proposta, muito vaga, do Paulo Branco: reunir quatro realizadores para cada um de nós fazer um episódio de vinte minutos, em que o assunto seria, muito genericamen­te, a cidade de Lisboa. Depois, o Pedro Costa, que era um dos quatro, soprou-nos a ideia de fazermos qualquer coisa à volta de farmácias. Cada um de nós pegava numa farmácia lisboeta e, a partir daí, traba­lhava o assunto. Depois, penso que ao Botelho (não tenho a certeza se foi a ele), o número 4 deve ter-lhe sugerido «Os 4 Elementos» e assentou-se em fazer­mos os quatro episódios sobre Água e Fogo, Terra e Vento... ou Terra e Ar. Eu, nessa altura, por pura coincidência, tinha comprado um livro de um escritor francês de entre as duas guerras, chamado Emmanuel Bove. O Bove foi descoberto pela Colette, e muito admirado pelo Beckett, porque faz parte da família. Li uma página dos “Mes Amis”, do Bove, e estávamos na fase de haver um assunto e não saber muito bem o que fazer (no meu caso com a Água). A Água tocou-me a mim...

 

J:L: Porquê a ti?

 

J.C:M. : Não foi por sorteio. Foi por consenso, sem grande discussão. Eu estava, então, a ler o Bove e cheguei a uma das narrativas do livro, chamada “Neveu, le Marinier”. É a história de dois tipos que tomam a decisão  de cometer suicídio em conjunto. E disse ao Branco: «Olha, há uma coisa do Bove. Posso começar a trabalhar sobre isso:» O Branco ter-mé-á dito: “Eh pá, não leias mais, tens um ponto de partida, agora desembrulha-te:» E foi exactamente assim: até hoje nunca li o resto da narrativa do Bove. Bom, depois, passou algum tempo e eu tinha escrito a anedota (chamemos-lhe assim) do encontro de dois tipos. Um seria o sr. João de Deus, feito por mim, e o outro um tipo mais velho do que eu. Tinha - pensado no Ruy Furtado. E o filme terminaria com o suicídio do velho marinheiro, depois de uma vaga deambulação pela cidade de Lisboa, - pelas putas, pelo puro Intendente, pela zona, portanto, do putedo mais sórdido de Lisboa, aquele onde se apanham mesmo doenças, e se encontra a fauna mais marginal, sei lá, cabo-verdianos. E dizer cabo-verdianos não é uma questão de racismo. É que, de facto, aquela é uma zona muito frequentada por negros, que passam a noite a beber e a atenuar a solidão com umas pegas de ocasião. E pareceu-me que o sr. João de Deus, no final do filme, podia ter uma saída airosa, um pouco cínica, do género: «Atiraste-te ao rio, é contigo - boa noitinha, eu continuo na minha.» O personagem do sr. João de Deus podia introduzir uma nota irónica e cínica.

 

«,JL» - Mas, o sr. João de Deus acabou por não entrar no filme e, em vez dele, surge o Dinis Neto Jorge...

 

J.C.M. - Pois foi. E pareceu-me que o Dinis, apesar de tudo, não é o João de Deus. É um persona­gem mais cândido, e este final não fazia sentido. Mas o filme levou outras peripécias. Às tantas, o Branco aparece a dizer que, depois de ter negociado com a RTP, afinal já não eram vinte minutos. Eram cin­quenta e tal, no mínimo. Eu disse-lhe: «Eh pá, isso já é outra coisa, já dá mais trabalho, e eu não estou para escrever.» E não estava para escrever por duas ra­zões. O João Botelho tinha escrito para aí cinquenta páginas de argumento, e eu tinha escrito três. Mas, antes é preciso dizer que isto çomeçou por passar  pelo Canal I, Moniz, etc, e foi para a frente um bocado por pressão do Moniz sobre o Fernando Lopes, director do Departamento de Coproduções, que estava um bocadinho renitente à aprovação dos projectos. Mas tinha gostado imenso do argumento do João Botelho e tinha-lhe dito uma coisa um bocado arrepiante: aquilo era tão bom, tão bom, que qualquer pessoa o podia fazer. O que irritou o Bote­lho e a mim também. É que isto não é assim. Ou melhor, é, nas televisões: apresenta-se-lhes um ar­gumento, uma espécie de pronto a filmar-, e não importa quem o pode fazer. Ora isto é uma coisa que qualquer cineasta encaixa mal. De facto, na televi­são, a lógica é o pronto a filmar, ter a papa toda feita ao nível da escrita e, depois, qualquer funcionário pode filmar. Nós pensamos que o cinema é outra coisa: o cinema é uma coisa que só se sabe no fim, uma coisa que tem marcas de fabricação. E marcas pessoais. Isto é: só o Botelho é que pode filmar aquilo, só eu é que posso filmar isto, que aliás não existia, que eu não quis que existisse. Precisamente por isso. Mas devo dizer que o Lopes gostava da minha pequena sinopse. Depois, o projecto ainda levou outra volta. Não me apeteceu especialmente filmar em Lisboa e fiz uma proposta transferir “O Último Mergulho” para Paris. Começou-me a apetecer filmar em Paris, porque queria filmar com o Léaud – o Ruy Furtado já tinha morrido. E, então, pareceu-me que devia ser eu a fazer de mais velho e o Léaud de mais novo,  porque houve sempre um mais velho e um mais novo. Uma outra ideia foi acabar com “O Ùltimo Mergulho” e fazer uma coisa com muitas similitudes, chamada “A Bacia de John Wayne”, que é um bocado consequência de uma conversa que eu tive com o Serge Daney. O Daney pediu-me um texto crítico para o “Trafic” sobre “A Bacia...” Eu comecei a escrever e saiu-me sob a forma de argumento cinematográfico...que, neste momento, está aqui. Tem 64 páginas.

 

Do «Mergulho»para «A Bacia de John Wayne»

 

«JL» - E é o argumento do próximo filme?

 

 J.C.M. - É o argumento do eventual próximo filme e tem uma frase do Serge: J'ai rêvé que John Wayne jouait merveilleusement du bassin au Pôle Nord. Isto tudo, nasce de um encontro, uma conversa entra um pensador-passador cinematográfico e um pobre cineasta, ou,  se quiser; de um debate entre  um teórico e um praticante, que é uma coisa que, em meu entender, só pode trazer benefícios mútuos. É assim que eu entendo o exercício da actividade crítica cinematográfica: a circulação de ideias entre um crítico e um cineasta, em que se consegue estabe­lecer, de alguma forma, um diálogo. E assim chegá­mos ao projecto da “Bacia...”, inicialmente ainda inserido no projecto de «Os 4 Elementos.» O que se passou, porém, é que La Sept leu o projecto da «Bacia..., e não o apreciou enquanto telefilme. Su­ponho que o tipo de La Sept disse ao Branco: «Isto é um filme para cinema, não é um filme para televi­são.» E o Branco, seguindo isso, retirou o «Bassin... de, ”Os 4 Elementos”. E ambos deixámos cair o «Mergulho....» Não te vou contar o «Bassin...», mas, em relação ao “Mergulho”, mantém-se, por exem­plo, o desejo de suicídio a dois, entre outras coisas. 0 velho marinheiro (que serei eu no filme) começa por encontrar um senhor chamado Jean de Dieu, que é guia no Museu do Cinema. O velho marinheiro - depois isto são os disfarces do personagem - voa para o Sena, faz o salto do anjo do Pont Neuf, e cai no Sena. Mas, dado que sou eu, o falso marinheiro e portador de falsa identidade, no fim descobre-se que é o sr. João de Deus, que, enfim, fez tudo bem, mas o seu suicídio é inteiramente simulado, fica com a rapariga e parte com ela para o Pólo Norte, montando garbosamente um asno, como o último avatar possí­vel do John Wayne.

 

“JL”: E como se retomou o “Mergulho” ?

 

“JCM”: Às tantas, fui para Paris fazer as loca­lizações de «Le Bassin de John Wayne» e, de repen­te, recebo um telefonema do Branco: «João César, temos que fazer `O Último Mergulho.' E eu disse­-Ihe: «Ó Branco, não me lixe.»Ele disse que fazíamos depois da «Bacia....» Eu respondi-lhe que isso já me complicava muito, a não ser que se fizesse como excrescência da «Bacia...», porque não me apetecia fazer dois filmes seguidos. Depois, ele lá teve artes e manhas para me convencer a fazer antes. E há uma coisa muito engraçada: o Branco dá-me três sema­nas de rodagem, e, coisa estranha, é o realizador que diz: “Eu não quero três semanas, quero duas”. Com o habitual cepticismo lusitano, ninguém acreditava que eu fizesse o filme em duas semanas, e aí na praça disse-se: «Este gajo deve estar doido» (como se fosse novidade. Eu não estava doido, já era). Tudo porque eu quis filmar à noite com a luz existente, sem iluminação artificial, a não ser a existente, a ilumina­ção municipal, que, aliás não é má, e a iluminação das festas feita pelo povo de Lisboa, o povo dos bairros - grande descoberta: ilumina admiravelmente bem. É evidente que, à partida, havia aqui uma pequena perversão. Como sabia que o filme era para a televi­são e a televisão normalmente utiliza muita luz artificial (para se ver tudo - ou para não se ver nada), eu queria o filme um bocado sombrio. Sem ir àquele ponto extremo do Fassbinder, que foi fazer uma série para televisão a jogar no limite do visível. Tratava-­se de encontrar alguém que aceitasse esta aposta o que não foi fácil. Mas encontrou-se um grande operador, no meu entender, e foi assim que voltámos ao «Mergulho.» Não havia nada, à partida. A mim interessava-me fazer - acho que não lhe devo chamar improviso mas qualquer coisa que fosse uma espécie de work in progress. Isto é, algo em que houvesse um fio condutor. Por fio condutor, pode entender- se, também, um fio de água, uma espécie de arrimo que vai seguindo o seu ritmo até desembo­car no mar - o que, aliás, está no filme. O que é que nos interessava, à partida? Interessava-nos testar várias coisas: a capacidade da película, os actores, a equipa. À partida, não havia nenhum entusiasmo especial: havia uma previsão de duas actrizes, a Francesca Prandi e a Rita Blanco, e dois actores, Canto e Castro e o Dinis, tudo pessoas com quem eu nunca tinha trabalhado. A Fabienne chegou na véspera, foi uma decisão de véspera. A Fabienne estava prevista para o “Bassin...”, não para este filme. Mas veio cá, e, num fim-de-semana, praticamente na véspera das filmagens, tomámos a decisão conjunta de ela entrar no filme. Disse ao Dominique: “Vamos fazer um démarrage psicológico.» Havia as festas da cidade, reportagem, câmara à mão. Isso foi outro parti pris - o de utilizar um estilo reportagem muito próximo das coisas que se faziam nos primórdios da televisão. E apanhou-se o que se apanhou, muito embora, depois, nós tivéssemos limpo o filme. Uma verificação à posteriori foi o lado documentário bovino. Durante as festas, os portugas andam de um lado para o outro com aquele lado paspalhão a comer sardinhas e a beber copos, três noites. E verificou-se que, sempre que as personagens não estavam, o filme caía um bocado. Como havia material suficiente para fazer um filme de hora e meia, foi-se limpando isso na montagem.

«JL» - E como foi o trabalho de actores?

J.C.M. - Tratando-se de actores que eu não conhecia, com quem nunca tinha trabalhado, a pri­meira aproximação foi inquietante, nomeadamente no que diz respeito ao Dinis, porque, se vires bem o filme, o Dinis tem sempre um ar um pouco égaré. Parece que está no filme ao lado, e isso assustou-me um bocado. Tratou-se, portanto, de ir trabalhando os personagens de acordo com as características dos actores. Pelo velho método do tactear, tentar descor­tinar para que lado é que podia puxar este ou aquele. O Canto e Castro, à partida, era o chamado valor seguro. É um velho actor de teatro e tem aquela base de savoir faire, ó que não era o caso do Dinis. De resto, era tirar partido, sem exageros, do lado engra­çado da Rita, do lado modelo da Francesca, que lhe vem de uma escola de poseurs - de posar para a câmara - e trabalhar bastante a Fabienne, que é uma actriz esplendorosa e com quem se estabeleceu uma relação amorosa (amorosa, cinematograficamente falando). Isso é uma coisa que se, sentiu naquela circulação que houve entre nós. E quando isto acon­tece, acho que é formidável; quer para o actor quer para o realizador. À Fabienne, eu acho que era capaz de estar a vida inteira a filmá-la.

 

«JL» - E assim se foi o manguito?

J.C.M. - Como é que chegámos a largar o manguito? O Dinis não é uma criatura irónica, é um actor extremamente contemplativo. É certo que eu não dou muitas indicações. Disse-lhe: «Não te per­cas muito, não andes a olhar para a Lua. Olha para a Fabienne, que é a tua amada no filme.» E assim se fez. Depois, há aquelas coisas que se foram inventan­do todos os dias, mas porquê? Porque nós filmámos muito e muito rapidamente. E isso dá uma margem espantosa de liberdade. Não há a opressão dos meios, excepto um pouco na noite das Salomés. Aí fui um bocadinho traído: foi uma coisa feita na noite do Equinócio, na noite mais curta do ano, e às cinco e meia da manhã rompia o dia. E aqui foi a única cena em que há alguma iluminação artificial e artificiosa. Mas na cena há dois tipos de iluminação: uma realis­ta, nas mesas, e uma com filtro vermelho para as danças (vermelho, porque o reino de Herodes era um reino sangrento). E aí perdeu-se um bocado de tempo a iluminar o poço. Mas foi a noite em que se filmaram 23 minutos de filme úteis, com charriot e tudo. E foi, praticamente, a última noite. Depois, no dia seguinte, fez-se o passeio da Rita, na Avenida, sem o Dominique, com o assistente de imagem, porque o Dominique e a Fabienne tinham partido para Paris.

 

O sagrado e o profano

«JL» - O «Libération» classifica o teu filme de croquis genial. Tu apelida-lo de «esboço de filme.» Porquê «esboço»?

 

J.C.M.-  A resposta é muito simples. É um filme feito a uma velocidade vertiginosa, não há tempo para qualquer espécie de perfeccionismo. E também porque nós quisemos sempre, como parti pris, que o filme tentasse engolir as suas próprias imperfeições de feitura rápida. É como a escrita de jacto, em que não há tempo de fazer as correcções, tempo de burilar. E isto é um parti pris moral.

 

«JL»-Porquê moral?

J.C.M.- Porque nunca se quis apagar, quis-se fazer exactamente assim. Para citar uma velha frase do Metias Ayres («toda a arte leva em si um pouco de rudeza»), tratou-se de não querer retirar ao filme o lado rude, bruto, e por isso é que eu disse sempre que a estética deste filme é uma estética do esboço.

 

<JL> - Um dia disseste que o cinema era, também, durée. E eu acho que essa durée é parti­cularmente evidente neste teu filme. Concordas?

 

J.C.M. - Eu acho que o cinema é a arte de maîtriser o tempo e isso é a coisa mais difícil que há no cinema. Eu sou absolutamente contra a chamada longueur, a coisa excessiva. Se a coisa não serve, se é morta, corta-se. Mas é preciso dar tempo às coisas, também por respeito pelo espectador. E preciso dar tempo para que o espectador possa ler o filme, possa ler o plano, possa saborear cada plano. Mas isto é extremamente difícil, extremamente ingrato. Porque o ideal é não ser nem a mais nem a menos, para que cada coisa tenha a justeza do tempo.

 

“JL” - E sentes que o conseguiste?

 

J.C.M.-Isso não me cabe a mim dizer se sim ou não. A televisão, normalmente, é feita contra isso. Fala-se, por exemplo, muito da proliferação de ima­gens na televisão. É mentira! O que se sente na televisão é a ausência de imagem. É uma imagem que não é cinematográfica, porque não tem memória, porque não tem espessura. Não tem o lado físico, nem produz um batimento de coração. Não tem sístole e diástole, não tem ritmo interno. E uma coisa codificada, é o que eu chamo a estética do gafanhoto, uma coisa saltitona. Não comove.

 

«JL»-Das « Recordações» ao« Mergulho» há uma evolução no teu olhar sobre Lisboa. Este, de agora, é mais amável. Mas, ao mesmo tempo, enquanto no final das «Recordações», o Luís Miguel Cintra te dizia (ou dizia ao João de Deus): «Vai e dá-lhes trabalho», no «Mergulho» , a voz dele entoa aquilo que o Bénard classifica de «can­to fúnebre» sobre o cinema e sobre Portugal. Estás de acordo com a mudança de olhar sobre a cidade e sobre o «canto fúnebre»?

 

J.C.M. - Pessoalmente, tenho muita dificulda­de em lidar com a morte. Há um lado elegíaco no texto do Hölderlin. São dois textos poéticos sobre uma Grécia que é a Alemanha burguesa, e em que o poeta promete à amada um país novo, uma nova Grécia, no meio de escombros, de guerras sangren­tas. É uma metáfora sobre o estado do cinema e sobre o estado da sociedade civil portuguesa.

 

«JL»-Não é por acaso que a casa de passe se chama Pensão 25 de Abril?

 

J.C.M. - Não é por acaso, não. Pode ser um canto fúnebre sobre aquilo que nós pensávamos que o 25 de Abril nos podia oferecer. Eu não pensei nunca que o 25 de Abril ia descambar no neomarcellismo, que é esta coisa, este cavaquismo enquistado na sociedade portuguesa. Mas isto são belos sonhos revolucionários, como de resto o texto do Hölderlin que é um texto utopista, ainda impregnado dos ideais da Revolução Francesa. Uma utopia que se esboroou na nova Alemanha pré-bismarquiana.

 

« JL» - O Bénard diz que o teu filme é um filme sagrado. «II Messagero», numa frase muito bonita, diz que o filme «descobre o sagrado onde o cinema o deve procurar: no óbvio, no quotidia­no, no corporal e no fio invisível que o liga ao que temos de mais inaferível, chamem-lhe alma, men­te, ou o que quiserem.» Não é a primeira vez que se fala de ti como um cineasta religioso. Com razão?

 

J.C.M. - É evidente que eu quis que este filme fosse um filme um pouco mais explícito. Chamar-­lhe ars poetica são grandes palavras, mas, a propósito da «Casa Amarela», certa crítica cega, surda e muda  (digo certa crítica, porque houve excepções), de repente, tomou-me por uma espécie de cineasta abjeccionista. Ora, é preciso não saber ver. A questão parece-me de uma evidência total. Para já, não sou um cineasta da abjecção. Sou um cineasta da abomi­nação. Há coisas que são abomináveis, e isso eu mostro. Eu faço filmes para mostrar isso. Mas este não é o meu primeiro filme. Andamos aqui há anos, os filmes seguem-se uns aos outros e há uma lógica nisto tudo: é passar da abominação ao sagrado. E o sagrado é qualquer coisa que se toca. Que se to­ca, tentando não profanar. Não profanar o quê? Tentando não profanar o real. Isto é, o real é o que é, e toda a forma de manipulação repugna-me. Quanto ao religioso, sim, mas no sentido de estar religado às coisas, aos seres. O sagrado é o cinema, ao fim e ao cabo.

 

«JL» -Sagrado, porquê?

 

J.C.M .- Porquê? O cinema é um mundo que está desertificado e nós sonhámos ser habitantes desse mundo. É nesse sentido, também, que eu não me sinto um cineasta português. Considero­me um cineasta, ponto. Sou um homem do cinema. O cinema para mim não é nem português, nem chinês, nem americano. É o cinema, é o desejo de criar um mundo, é um desejo que nasce quando o Homem sai da caverna, sai verticalmente da caverna, com a lenta evolução da espécie e a conformidade da bacia à posição vertical, e vem cá para fora, olha o mundo, olha o que está à volta, olha a realidade circundante e se começa a fazer perguntas. Perguntas sobre o que o rodeia, o seu próprio corpo - está inscrito em Lascaux, na mãozinha impressa na caverna. É o desejo de projectar o seu próprio corpo numa superfície. E por aí fora. Este desejo está ligado a toda a História do Homem: está no Platão, está nos Egípcios, está no Renascimento, com a invenção das câmaras escuras, está na cronofotografia, que precedeu o cinema, e está na invenção simultânea da maquineta. O que se descobre no século XIX é uma tecnologia que permi­te passar dás rodinhas do Edison, do Marey, etc, da espingarda-fotográfica - eu acho óptimo, porque é uma espingarda para captar imagens. Até que se chegou à câmara dos irmãos Lumière e que permitiu que o cinema saísse das caixinhas para ser projectado numa superfície. O cinema conquistou o espaço.

 

 «JL» - E chegamos à televisão...

 

J.C.M. - O televisor, de certa maneira, é o regresso à caixinha, mas é um meio novo, uma novidade tecnológica, que em si é um bem. É uma nova conquista, que, inicialmente, nos seus primórdios, mereceu a atenção de grandes cineastas pionei­ros. Desde Rénoir, que, por exemplo, descobriu que com a utilização de certas técnicas televisivas, ga­nhando tempo e dinheiro, podia trabalhar a cena com oito câmaras. É o período dos últimos Renoir. Desde o Rossellini, que pensa que a televisão é um instru­mento didáctico, e que trabalhou, mesmo estetica­mente, em função de dois eixos: o eixo da profundi­dade e o eixo da lateralidade. É um modo muito simples de fazer uma mise-en-scène (se assim se pode dizer) em cruz, quase. Não é aquela história do grande plano, tantos planos, etc. Isso é a telenovelís­tica. O que se passa é que, se é verdade que alguns cineastas descobriram as enormes virtualidades da televisão, o poder político e económica, quase simul­taneamente, também as descobriram. E isso desvir­tuou a televisão. E a televisão que hoje existe é uma televisão onde a informação é cada vez mais inexis­tente, a televisão dominada pela publicidade e pelo poder político, um veículo de propaganda política, aliás bastante tenebroso. Mas isto não é nada contra o media em si. Eu sei muito pouco disso, nunca pude experimentar, mas nós, cineastas, podemos trabalhar sobre novos suportes, trabalhar sobre vídeo. Hoje, a qualidade do suporte vídeo é inferior à do filme: a imagem não tem a mesma definição, não tem o mesmo brilho, etc. Mas admito que daqui a cinco, dez anos, possa ter, e é indiscutivelmente mais bara­to. Também queria dizer que acho que não fiz um filme contra a televisão. Fiz um filme para aquilo que eu penso que a televisão deve ser.

 

Imagem sem som, ecrã sem imagem

 

“JL” - Há quem, sobre este filme, te acuse de improviso na rodagem e de obscenidades desne­cessárias no diálogo. Que é que tens a dizer?

 

J.C.M. - É, de facto, um filme improvisado. O que eu posso dizer é que há maus improvisos e há bons improvisos. Sei lá, por exemplo, a música de jazz, a melhor que eu conheço é inteiramente impro­visada. A acusação não é pertinente, porque podem dizer o pior de um fiIme com uma planificação férrea, nada improvisada, onde tudo é calculado. Por exem­plo, o arquitecto Macedo tem fama de fazer planifi­cações calculadas milimetricamente. São métodos de trabalho. Neste filme escolheu-se o improviso. Quanto ao recurso à obscenidade, devo dizer que isso, por acaso, é contraditório com o improviso. Aí não há improviso: fez-se um inventário de todos os palavrões existentes na língua portuguesa. Escrupu­losamente. Fez-se uma selecção, é evidente, mas recorrendo a expressões que eu me lembrava. Por exemplo: brochista de conas. A expressão não é minha, era do major Oneto, um velho boé­mio que andava sempre meti­do nas intentonas. Ele distin­guia entre o mineteiro, que é uma actividade sexual nobre, e brochista de conas, que é já uma coisa muito sórdida. O major Oneto era um fã do cuni­lingus e fazia esta distinção. Eu admito que haja uma certa imoderação, mas isso é uma pequena dedicatória ao embaixador de Portugal em Marrocos.

 

«JL» -Que impediu que as «Recordações da Casa Amarela» passassem em várias cidades marroquinas...

 

J.C.M. - ...Com o pretexto do filme ter uma linguagem muita crua. Acho que, desse ponto de vista, este tem mais. Tem acentuadamente mais. Mas é assim: comigo não há nada a fazer. É tão simples quanto isto: o pior que me podem fazer é matar-me e se me matarem não passo do chão. Portanto, vai ser cada vez pior. E também acho que é uma coisa muito saudável para limpar alguns pudicos ouvidos lusita­nos. É evidente que também segui o conselho de um poeta francês chamado Pierre-Jean Jouve: Commence par Ie plus bas/ s'épaissant sur les mots obscènes et froids.

 

 

 

«JL,»  -Explica a opção pelos onze minutos de bailado sem banda sonora e o ecrã a negro, no final.

 

J.C.M. -A Esperança é uma rapariga da vida, o chamado coração de ouro, e é evidente que é uma personagem que tem sonhos. É uma personagem com um handicap: é muda. Trabalha um bocadinho para recuperar a voz, faz exercícios vocais e sonha ser dançarina. O primeiro plano da Esperança, no Maxime, é a olhar para a bailarina brasileira. Depois assiste à primeira Salomé, dançada por uma dançari­na, que teve pouco tempo para ensaiar a dança. A segunda dança corresponde ao sonho da Esperança, que se vê em Salomé, sonha-se dançarina. São os tais onze minutos sem som. Porque é que se tirou a música? Por várias razões. Primeiro, porque era inútil, guardou-se uma remeniscência da música da dança anterior, fez-se silêncio, cinema mudo, por­que é uma coisa totalmente diferente. A nós interes­sava-nos o trabalho sobre o corpo da actriz. É uma actriz que dança, que não sabe dançar (ensaiou a dança uma tarde, ainda tivemos tempo pa­ra isso) e que, mimeticamente, conseguiu dançar a dança da outra. Quais são as diferenças? Acho um prodigioso trabalho da actriz. Ela dança mal: há pequenos desequilíbrios do corpo, há certos movimentos, sobretudo da coluna, que ela não consegue fazer, porque não está ginasticada para isso. Há certos movimentos de mãos que não são elegantes. Ao longo da dança tem pequenos desfaleci­mentos e, depois, tem três ou quatro coisas que eu acho es­plendorosas. E a maneira como elo procura a luz. Enquanto na primeira dança é a luz que segue a bailarina - um projector móvel com gelatina ver­melha, na segunda, é a Fabienne que procura a luz. É um grande trabalho da actriz, não é trabalho de realizador - o realizador é apenas um espectador que se sente gratificado, é como se o filme não fosse meu. Quanto ao ecrã a negro, há uma primeira parte do texto de Hölderlin que é sobre o plano dos flamin­gos e que se segue à sequência dos girassóis. E essa sequência dos girassóis é «o nascimento de Vénus.» É uma sequência em que se ouve a água do mar, o barulho do mar, é o rio que desaguou já. É uma explosão puramente lírica. É um bocado onírica. Naquela altura já não se sabe muito bem onde é que estamos: se no sonho, se na realidade. E, depois, entra o texto sobre os flamingos e, a partir de uma certa altura, entra a água. Há um movimento de câmara descendente sobre o rio, sobre os peixes que saltam, com a entrada da água, da água do rio, e até com uma linha de separação muito clara entre terra e água - há uma linha de areia. Depois, quando os flamingos acabam (“oh minha amada”), o texto continua sobre o negro. Porque é outro movimento. É o movimento de uma voz. Com música. É também aí que entra a primeira nota da «Ária das Variações Goldberg» e é sobre o negro. Portanto, é Hölderlin e, depois, a música que continua ainda sobre o genérico final.

 

«JL» -Porquê aquele Bach?

 

J.C.M. - Porquê Bach, porquê aquele Bach e porquê tocado por Glenn Gould? Porque a constru­ção do filme é em espiral. A espiral é um bocado a linha da vertigem, do remoinho. É uma linha barroca, por excelência. Não tem princípio nem fim. É como um pintelho (pintelho feminino) que se desenrola, e eu ando às voltas destas coisas. É como o fio de Ariadne, O pintelho, em si, não me interessa muito. Interessa-me como fio de Ariadne. O Gould é tam­bém uma primeira aproximação ao -Bach tocada por ele. Porque e é uma música ascensional. Aliás, o Gould trauteia. É a chegada ao fim do caminho. Ah, quando te falo em primeira aproximação, falo em primeira aproximação das «Variações Goldberg», que vão entrar, a partir de agora, em todos os meus filmes. Não, exactamente, a ária, mas as variações. Também não disse, mas é evidente que o negro é uma voz que enche o ecrã, uma voz que tem vários movimentos. É uma voz extremamente modulada e, a partir de uma certa altura, o texto não suportava qualquer imagem, o que de resto seria redundante porque o  texto está cheio de imagens. Tem todas as imagens.

 

«JL»-Já viste estes últimos filmes do Botelho e do Joaquim Pinto e, já agora, os do Luís Galvão Teles e do António-Pedro Vasconcelos?

 

J.C.M. - Respondo parcialmente. Vi o filme do Galvão Teles, que me fez rir, porque não me lembro de ter visto um filme tão imbecil desde «O Violino do João», que foi um filme feito por um pato-bravo de Tomar, um tipo que engatou uma corista húngara e resolveu fazer um filme. Este não é feito por um pato-bravo de Tomar, mas é feito, seguramente, por um pato bravo do Luxemburgo e fez as coisas mais atrozes que vi na minha vida. Não dei por mal empregue o meu tempo porque ri-me de uma ponta à outra. O filme do Vasconcelos já não vejo. Verei o Vasconcelos com muito prazer quando ele se apre­sentar como cineasta. Quando se apresentar como secretário do Audiovisual, a fazer de Ophüls e de Visconti, acho que não tenho interesse nenhum em ver, porque o cinema pode ser divertido mas não é nenhuma brincadeira.

Audiovisual e estética Chanel

“JL” – O Bénard elogia-te, entre outros motivos, por teres feito cinema e só cinema. E o João Mário Grilo porque fizeste um filme militante «contra o receituário audiovisual e a indiferença das formas.» Pergunto-te: o que é para ti um telefilme? O que é para ti o audio­visual?

 

 

 J.C.M. - Eu quis fazer um filme um bocadi­nho programático: de manifesto de resistência cinematográfica. Um filme contra os digestivos televisivos, etc. Um filme que pudesse ter um lado provocatório, que trouxesse uma memória do cinema, que é uma coisa que está a desaparecer na maior parte do cinema que se faz hoje. Já não há fronteiras. Faz-se, indiferentemente, cinema, televi­são, com todos os equívocos disso. E os filmes que se fazem não -guardam nenhuma memória cinemato­gráfica. São, no melhor dos casos, exercícios técni­cos mais ou menos virtuosos, em que se deixou de pensar a forma. É uma característica de todos os maneirismos. O maneirismo é uma crise da forma. Sendo um formalismo, é uma crise da forma. Porque a forma é feita a partir de formas pré-existentes, e, durante algum tempo, andou-se muito nisso. É mui­to sintomático no cinema americano, que é um cine­ma muito do reciclado. Recicla-se o cinema como se reciclam os sacos de plástico. Por exemplo, fazem­-se «Batmans» intelectualistas, sem a ingenuidade, a espontaneidade dos primeiros. É um universitário qualquer que resolve pegar numa coisa que faz parte do imaginário popular e introduz-lhe umas notas de problemática intelectualóide. O telefilme são os có­digos televisivos, de agrado imediato, porque o que interessa é fazer passar uma história. É o primado do argumento. Os resultados são sempre idênticos. Mas há distinções. Há uma estética Chanel Four, até há duas: é uma coisa equívoca que parte da crítica (desta mais apressada) supôs ser o renascimento do cinema britânico, o que é absurdo. Absurdo porque uma coisa que nunca nasceu não pode nunca ter renasci­do. Não há cinema inglês. O Powell e o Hitchcock são excepções.

 

«JL» - Mas define lá a estética Chanel.

 

 J.C.M. - O que é estética Chanel Four (a me­lhor)? Argumento bem feito, linear, bem construído, bem fotografado, bons actores. Logo, à partida, uma coisa segura não tem risco. Tudo mais ou menos igual, com uma forte componente social, muito reaccionária. São coisas que incidem muito sobre os conflitos da sociedade inglesa. E não é por acaso que isto coincide com o thatherismo: embora fale do desemprego e denuncie de algum modo as mazelas da sociedade britânica, funciona como sucedâneo. O operariado britânico revê-se - fica a ver-se diante do ecrã. Assiste, é espectador do simulacro do seu drama social e esquece uma coisa fundamental que é vir para a rua: as «manifes» acabaram, graças à televisão. Esta é uma das componentes, a vertente social do Chanel Four. A outra é a vertente estética, que dá os Greenaway e dá os Jarmans e essa coisa toda. É a estética bicharoca. Isto o melhor dos exem­plos. Depois, há as televisões europeias que não fazem tão bem. Aquilo é tudo coxo, mais ou menos, mas têm os códigos narrativos sempre idênticos: não há violência nenhuma (violência é violar códigos). Há é o espectáculo da violência, que é outra coisa. Pronto, aquilo segue tudo mais ou menos a continui­dade americana adaptada ao ecrãzinho, com planos, próximos. Isto são os telefilmes. Em Portugal como temos, felizmente - repito - a televisão mais estúpida do mundo, a mais atrasada, é possível fazer umas coisas, trabalhar nos interstícios do poder, trabalhar contra os Fernando Lopes - é preciso dizê-lo - e contra os funcionários da televisão. Por exemplo, este filme: como já tive o prazer de ver a cara do director do Festival de Veneza, que eu sabia à partida qual era, quero ver a carinha do sr. Ricardo Nogueira e do sr. Moniz. E do sr. Lopes  -  porque não? O sr. Lopes, entendido de maneira dúplice. Por­que há o Lopes, cineasta porreiro, amigo, etc., de palmadinha nas costas, e há o Lopes, funcionário da televisão, que tem que dar contas aos patrões. Gosta­va de saber qual dos dois Lopes vou eu apanhar.

 

«JL» - Ainda não falaste do audiovisual...

 

J.C.M.-O audiovisual é aquela coisa que nin­guém sabe o que é, nem o próprio secretário. O secretário sabe uma coisa: é que, para que aquilo funcione (sem ir buscar dinheiro do IPC), precisa de uma subvenção da ordem dos quatro milhões de con­tos, o que é bom para ele. Mas suponho que o Cavaco não tem essa massa. Gostaria de ter, mas não tem, nem vai ter, porque vamos todos, agora; ter que aper­tar um bocadinho o cinto. Como andámos, durante os últimos anos, a viver à custa dos fundos comunitá­rios; agora é assim. Porque neste país não se cria riqueza, parasitaram-se os fundos comunitários. Agora vou-me rir, mas há seguramente muita gente que não se vai rir: os mesmos, os do costume, quando tiverem que apertar o cintinho. Porque, como é evi­dente, isto vai recair sobre a maralha - a população portuguesa. E sempre mais sobre uns do que sobre outros. A história é conhecida. Ora o Vasconcelos­ pessoa que, aliás, eu muito estimo  - tem um sonho na vida: ganhar muito dinheiro. Género: “Como é que agente vai engenhocar uma coisa para eu me ves­tir de alto a baixo nos Versage, nos Pollini, nos Ar­mani?” Isto é: “Como é que vou comprar as minhas brutas fatiotas e vestir-me como nenhum italiano se veste, a peso de ouro? Como é que eu vou andar com roupinhas na ordem dos milhares de contos e não só roupinhas...?”, Então, ele teve a ideia do Audiovisual. Mas como o Cavaco, gostava de dar, mas não vai poder dar-lhe a massa, a pergunta que eu faço é esta: «O Vasconcelos não ganharia mais como pessoa honesta? Com um bocadinho de trabalho, não seria mais rentável?»

 

“JL” - No ano das “Recordações», partiste para Veneza e disseste: «Vou ganhar.» Com o “Mergulho” partiste e disseste: «Não vou ga­nhar.» E não ganhaste, de facto, excepto um pré­mio não oficial, o Prémio da Crítica Italiana da re­vista «Filmcritica.» A pergunta é esta: qual a im­portância real deste prémio, até para uma even­tual distribuição comercial do filme em Itália?

 

J.C.M. - É um prémio dado pela Redacção de uma revista italiana, fundada por um senhor chama­do Roberto Rossellini, e que é um bocadinho afran­cesada e seguidista, no sentido em que segue a crítica francesa dos “Cahiers du Cinéma” da primeira fase. Quanto ao impacto na distribuição em Itália, o pré­mio não tem nenhum porque toda a série de «Os 4 Elementos» já estava comprada por um grande dis­tribuidor. O prémio pode é ter, eventualmente, algum impacto no que respeita ao meu filme, porque penso que eles vão pôr isso no cartaz. Publicita-se sempre.

 

“JL”- A série está já vendida para mais algum país?

 

J.C.M.-Eu tenho a impressão que o Branco me disse que tinha vendido aquilo para quase todo o mundo, mas não te posso dar muitos pormenores.

 

“JL” - Mostraste o filme ao João Bénard da Costa antes de o mostrares a mais ninguém. Ele escreveu um texto absolutamente deslumbrante, mas não é isso que está em causa. O que está em causa é isto que eu te pergunto: por que é que não mostraste o filme, ao mesmo tempo, aos críticos portugueses (já sei que o puderam ver, depois, na manhã do próprio dia em que o filme passou em Veneza)?

 

J.C.M. - Eu mostrei o filme ao João e não mostrei a mais ninguém, porque na minha sala de montagem só entram amigos. É uma questão de pura cortesia. Convidei o João, que é um amigo meu, para ver o filme. E tinha interesse em saber a opinião dele porque, de um modo geral, tenho imenso respeito pela sua actividade de cinéfilo, de amigo do cinema. E mostrei-lho porque sabia que ele nos ia oferecer um belíssimo jantar. Enfim, sabia não, suspeitava. Não fazia a mais pequena ideia se ele ia gostar ou não. Pedi-lhe a chamada opinião franca sobre o objecto (que visionou em más condições) e pedi-lhe um texto para Veneza, coisa que ele fez. Tendo-lhe dito: «Olha o texto é à vontade, se disseres mal, vai na mesma. O produtor é capaz de não achar muita graça, mas por mim não há problema nenhum.» Não mos­trei aos críticos, porque não. Sei lá, acho que o João Lopes é professor de Montagem no Conservatório e acho que não se deve mostrar o filme a um professor de Montagem, porque podia sempre sugerir outra montagem. É normal. Mas o filme foi escrupulosa­mente mostrado à Imprensa, antes. Não por mim, mas pelo distribuidor, Eu, aliás, sou um bocadinho avesso a mostrar os filmes. E há outras razões: acho que a crítica deve ver o objecto como vai ser mostra­do nas salas. Também penso que eles não têm muita experiência em ver filmes nu­ma sala de montagem E não têm que ver. Do mesmo modo que, quando se convida alguém para jantar, não se leva o con­vidado para a cozinha. São es­tas coisas. Antigamente, é ver­dade que eu mostrava quase sempre ao Fernando Lopes, porque o Lopes tinha boas ideias de montagem. No tempo em que o Lopes tinha boas ideias de montagem, era um convidado permanente.

 

Portugal é uma coisa, o cavaquismo outra

 

«JL»-Os «Cahiers» anunciam que o «Silves­tre» vai estrear comercialmente em Paris, e, tanto quando sei, «Quem Espera por Sapatos de Défun­to Morre Descalço» também. Lá e cá. Confirmas?

 

J.C.M. - É uma hipótese. O Paulo Branco fa­lou-me em fazer sair «Os Sapatos» e «À Flor do Mar», embora às meias-noites.

 

«JL» -Finalmente, “À Flor do Man”!

 

 J.C.M. - « À Flor do Mar» também deve sair em Paris. Tenho aqui o contrato mas ainda não o assinei, não tive tempo físico para isso. E agora, como devo estar a partir para Paris, se calhar o melhor é eu levar o contrato ao homem. O «Silvestre» está, de facto, anunciado para o Outono em Paris, mas penso que já houve sessões do “Silvestre”, ao ar livre; em La Vilette, com três mil espectadores por sessão. Ouvi dizer que tinha saído uma notícia sobre isso, no «Libération», mas eu não li, e não tenho sobre isso, neste momento, qualquer informação.

 

«JL» - A propósito dos «Sapatos» e do «Sil­vestre», ocorre-me que com esses filmes lançaste no cinema dois actores portugueses que, até en­tão, nunca tinham en­frentado as câmaras: o Luís Miguel Cintra, em 1970, e a Maria de Medei­ros, em 1981. Orgulhas-­te das duas descobertas?

 

J.C.M.-O Luís já fa­zia teatro e a Maria também parece que já fazia teatro caseiro. São dois grandes actores de teatro - começo por dizer isto. O Luís é qua­se sempre um magnífico actor de cinema. Sobre a Maria eu tenho provavelmente mais reservas. Acho que ela devia repensar a sua participação em filmes. Pode ser aquilo a que se , chama, normalmente, crise de crescimento. Isto não tem nada a ver com as enormes capacidades que ela tem. Há talvez maus períodos, não sei o que é que se passa. Houve talvez um crescimento muito rápido, a fama que sobe à cabeça e faz descer a qualidade de representação - que é desastrada no filme do Gailvão Teles. Eu penso que foi o filme que a estragou a ela, porque nada naquele filme se salva. A Maria tem, talvez, o inconveniente de ser a protagonista, de se expor mais, num filme que não tem um plano de jeito. Mas, pronto, é sempre gratificante sabermos que demos uma mãozinha a alguém. Embora, no que respeita ao Luís Miguel, aquilo então, tenha acabado em drama.

 

«JL»-Eu sei. Ele chorou e disse que não fazia mais cinema.

 

J.C.M. - Disse que nunca mais fazia nada. E mais: como o filme não teve captação de som (é um filme completamente dobrado), a crise era tão grave que ele se recusou a dobrar-se. E a voz dele é a minha. E como eu não tenho o mesmo ritmo de fala, nunca consegui acertar com o sincronismo.

 

«,JL»-Partes dentro de dias para Paris, para fazer «A Bacia de John Wayne.»...

 

J.C.M. -Espero bem que sim...

«JL» - Em França tens uma alta reputação, basta ver as estreias que se anunciam, os elogios do «Libération», dos «Cahiers» , do « Trafic.»..

J.C.M. - Do «Positif.»..

«JL»-Em suma, a pergunta é, fundamental­mente, esta: viraste as costas a Portugal, enquan­to cineasta?

 

J.C.M.- Eu vou para Paris se o produtor aceitar as minhas condições, que são seis semanas de roda­gem com cinco dias de trabalho por semana, e duas carroças. Porque temos imensas cenas com uma carroça portuguesa da região saloia. E quero as carroças, em Paris, com a devida antecedência por­quê? Porque a carroça portuguesa tem dois varais e as carroças francesas só têm um varal. Como os burros são franceses - é complicado estar a trans­portar burros portugueses - tem que haver uma adaptação dos burros franceses aos varais portugue­ses. E, depois, o burro é um animal complicado. Portanto, quero ensaiar tudo isto com antecedência, se não pode ser um desastre. É no interesse do filme e no interesse do produtor, não é contra ele. Só que o produtor é muito desleixado.

 

«JL» - Quem é o produtor?

J.C.M. - É o Paulo Branco. Ele por vezes des­leixa-se. E, entre Paris e Lisboa, por vezes, a chama­da circulação da informação é muito deficiente. Mas, se isto for aceite e se eu puder, por exemplo, pelo menos ter uma semana de preparação com o director de fotografia, com o engenheiro de som e com os actores, tudo bem.

 

«JL» - Já estão escolhidos?

 

J.C.M.- Estão escolhidos, tirando um pequeno caso problemático com o Jean-Pierre Léaud. Os outros sou eu, a Fabienne, a Anna Karina, a Françoise Arnoul e o Benoît Régent. O Jean-Pierre hesita por razões de foro pessoal, que eu não devo, deontologicamente, dizer quais são.

 

“JL” Há mais projectos para França?

 

“JCM” Há, mas isto não significa voltar as costas a Portugal. Portugal é um país de que eu gosto bastante. Eu não confundo Portugal com o cavaquis­mo. E ao cavaquismo já voltei as costas há muito tempo e tenciono continuar a voltar. Gosto bastante de algumas coisas disto e não só de Lisboa. Sei que é um país com imensos defeitos, mas com imensas qualidades. De qualquer maneira, foi aqui que eu nasci. Portanto não se trata de exílio nenhum. Não sou o Eduardo Lourenço. Mas, tendo condições para trabalhar lá fora, porque não? Até pode ser que, finalmente, eu faça em Paris um filme bastante português.

 

«JL» - Última pergunta: há bocado, para a fotografia, puseste, a teu lado, o retrato emoldu­rado do Carlos de Oliveira. Porquê?

 

J.C.M. - É o meu pai espiritual. O pai que eu gostaria de ter tido.

 

 

 

Entrevista de Rodrigues de Silva

Publicada no Jornal de Letras a 22 de Setembro de 1992