De César Monteiro a Antonioni

 

O dia da liturgia

 

João de Deus espalhou um venenoso perfume sobre Ve­neza. "A Comédia de Deus", de João César Monteiro, é uma celebração jubilatória, missa intoxicante aos sabo­res e odores arcaicos de um gelado chamado Paraíso- o cinema. É um filme de outra galáxia. Comovente foi, também,  a celebração do regresso  de Michelangelo Antomioni. Foi o dia da liturgia.

 

Há filmes em cujas imagens lateja uma pulsão predadora da beleza, mas como se ela fosse o reencontro com odores venenosos, intoxicantes - Paradjanov realizava esses filmes, por exemplo. Há então cineastas que se fazem sátiros, predadores arcaicos. João César Monteiro é um deles e " A Comédia de Deus", que ontem exalou o seu perfume na competição veneziana, é um filme monumento, celebração litúrgica do cinema como se ele ainda pudesse ser pecado.

É uma obra que vem de outra galáxia – está obviamente a anos luz da baixeza normalizada da maioria  dos filmes da competição- e alguém lhe chamou "extraordinário tratado cinema, extraordinário tratado de obsessões e fetichismo". No caso deste filme, uma coisa tem que ver com a outra.

João de Deus, o sorveteiro que divide o seu tempo entre a mistura de aromas e a colecção de pêlos  púbicos femininos, é o celebrante da extraordinária sucessão de rituais por que se estende este filme, - ao longo de 2h 45m. Rituais de caça, claro, rituais de um erotismo infantil e também satânico. Quando João de Deus brinca com um par de cuecas de menina, a elegância dos gestos é a mesma que bailava no corpo de Chaplin, por exemplo, ao brincar com o mundo no " Grande Ditador".

E quando João de Deus mergulha para um poço de ovos onde esteve acocorada a sua jovem presa – a grande "perturbação" deste filme é a pedófilia – a sofreguidão é cósmica. De onde é que vêm essas imagens? " De muito longe, coisas que li, que vi, filmes, pintura. É um magma. Há muitos materiais e a imagem é sempre uma conclusão". Dizia o realizador na conferência de imprensa. Este filme tinha direito a sair daqui com um Leão.

 

Vasco Câmara

Publicado no  Jornal Público a 4 Setembro de 1995