A piada do português

 

VENEZA- A grande qualidade da festa de encerramento do 52º Festival Internacional de Cinema, no inicio da noite de sábado, foi a rapidez. Uma cerimónia tratada não como espectáculo, mas como mera formalidade para encerrar oficialmente 11 dias de maratona cinematográfica. Mas dois momentos inesperados aconteceram: a invasão do palco por manifestantes verdes e a pandega de João César Monteiro, director de "A comédia de Deus ", ganhador do Grande Prémio Especial – dividido com "L' uomo delle stelle ", de Giuseppe Tornatore. Mas tudo terminou com a presença tranquila do vietnamita Tran Anh Hung, autor de "Cyclo", que levou o Leão de Ouro.

A premiação da Coppa Volpi para os melhores atores honrou Ian Hart ( ausente e representado pelo diretor Thaddeus O' Sullivan, de " Nothing personal") e Isabelle Ferrari ( " Romanzo de un giovane povero ") como melhores coadjacentes. Isabelle   Huppert e Sandrine Bonnaire ("La cérémonie") dividiram o prémio de melhor atriz.

Quando o melhor ator, Göetz Goerge (" Der totmacher" ), subia ao palco, aconteceu a invasão de um grupo de manifestantes contra os testes nucleares franceses no Pacífico. Eles receberam o maior aplauso da noite, incentivado até pela organização do festival. A entrega do Leão de Ouro Especial, para pessoas com carreiras notáveis, foi mera confraternização. Receberam o prémio Alain Resnais, Woody Allen ( que mandou o diretor de fotografia Carlo de Palma com o recado " Eu não mereço"), Martin Scorcese, Ennio Moricone, Monica Vitti e Alberto Sordi.

Nada até então tinha preparado os espectadores para a entrada triunfal  de João César Monteiro – que andou bringando com os organizadores. O diretor português e Tornatore foram chamados ao mesmo tempo para receber o Grande Prémio Especial- dado no lugar do Leão de Prata. Monteiro já começou a brincar com o italiano no corredor da platéia fazendo questão que este passasse na frente. No palco, saiu cumprimentando o júri, enquanto Tornatore dizia lugares comuns. Na sua vez de falar, perguntou "Liberdade de expressão?" e brincou em quatro línguas diferentes. Monteiro atrasou a entrega do Leão de Ouro para Tran Anh Hung e fez no palco a mesma folia que mostrou em seu excepcional " A comédia de Deus".

 

Sem mesuras, sem Leão

 

VENEZA - O Festival de Veneza tem numerosos e variados prémios paralelos — dados pelos jovens, pelos católicos, pela Kodak, pelas feministas... Mas é sintomático que o único filme que ganhou três destes prémios e um dos oficiais — o Grande Prémio Especial, vergonhosamente dividido com Giuseppe Tomatore - tenha sido "A comedia de Deus", de João César Monteiro. O diretor português fez uma inesperada tragicomédia sobre um velho sorveteiro (o próprio diretor sob o nome de Max Monteiro) excessivamente fascinado por mulheres jovens. O filme tem uma narrativa perfeita, qualidade técnica inquestionável e enredo altamente incomodo. Tudo recomendaria "A comédia de Deus" para o prémio principal de um festival internacional de cinema. Mas o diretor não fez as mesuras habituais. Não cativou a imprensa e comprou briga com os organizadores que queriam cortar seu filme.

A história do corte tem duas versões. Os organizadores dizem que era só uma redução para que 'A comédia de Deus" coubesse nas sessões programadas. João César Monteiro diz que o corte era para encurtar o filme sim, mas havia a exigência de que ele fosse feito justamente na sequência mais forte. "A comédia de Deus" foi exibida na íntegra; conseguiu a maior polarização do festival e se mostrou o tipo de filme que tem que levar um prémio. Numa manobra maquiavélica, não estivéssemos no pais certo, o radical Monteiro foi obrigado a dividir seu prémio com mais uma bobagem açucarada e nostálgica do explorador da criança-que-há-em-você, Gluseppe Tornatore.

De resto, não há o que reclamar deste festival de Veneza. Ele mostrou grandes filmes ("A comédia..." e "Cyclo"), obras de qualidade ("Mighty Afrodite" e Romanzo de um giovane, povero"), cinema competente:("La cérémonie" e "De villegende, hollander"), filmes superestimados ("Clokers" e "The crossing guard"), bobagens simpáticas e  não competitivas ("Guantanamera" e "In the bleak midwinter" ), novidades interessantes

( "Der totmacher" e "Maborosi no hikari") e o grande engodo "L'uomo delle stelle", de Tornatore. Um panorama representativo de um cinema internacional que anda meio sem personalidade, mas com momentos de grandes interesse.          

A organização do 52° Festival Internacional de Cinema de Veneza até que fez direitinho — pelo menos no que diz respeito ao cinema. No quesito infraestrutura do evento a história é outra, longa e desagradável. Mas quem é que poderia prever que uma disputa cinematográfica com nomes como Chabrol, Scola e Branagh — e mais Michelangelo

Antonioni e Wim Wenders de hors-concours — poderia se revelar morna? Se o festival foi decente, o mesmo não se pode dizer da premiação. Onze filmes premiados numa competição que contava apenas com 17 concorrentes é um pouco demais. Com a premiação de "Cyclo" ao menos a escolha do Leão de Ouro foi saneada — o prémio vinha sendo dividido entre filmes nem sempre dignos.

 

Rogério Durst

Publicado no  Jornal O Globo a 11 de Setembro de 1995