Um filme maldito

 

Os Sapatos, mais do que um primeiro filme, é uma maldição.

A cada novo filme do João César cá estou eu - e comigo três ou quatro - a resmungar: nunca mais é o mesmo, anda a trair Os Sapatos, desta vez (Recordações) está quase a voltar aos Sapatos (Le Temps Retrouvé?).

Que teve então esse filme, que nem sequer é uma longa-metragem, que quase ninguém viu, e que tão fundo calou?

Era porque tínhamos vinte anos, não tínhamos dinheiro. Íamos para a rodagem em Sintra como toda a gente tomando o comboio no Rossio, havia um único carro de produção (o mini da Margarida Soromenho), começámos a filmar porque a minha mãe me emprestou três contos (e com isso comprámos quase toda a película PB que nesse tempo ainda havia), era porque era o nosso primeiro filme - a primeira ficção do César, quase o primeiro do Acácio, o primeiro do Luís Miguel e um dos primeiros da Teresa Ferreira que, de bata branca, nos recebia no Ulisseia, e parecia ser a única profissional no meio deste bando?

Era pelo irresistível encanto do César que a nós, miúdos, nos falava de Paris e de Céline e de Rimbaud e de Godard e nas veredas de Sintra falava das árvores de Murnau (eu então só vira O Último dos Homens), da Judy Garland a dizer Vicky Lester? Vicky Lester? Vicky Lester! e de Camões?

Era porque éramos todos, um grupo, quem por lá andava? E lembro-me para além dos actores, da Kitti no dia da filmagem do Martinho da Arcada, da Elsa e da Zé em Sintra, do Nuno Júdice passando, do Denis Cintra no Prédio do Tempo e o Modo onde filmámos (bastava tocar à porta e dizer podemos filmar? faz favor, esteja à sua vontade) a cena dos sapatos com a maravilhosa Antónia, da Teresa Porto roendo as unhas a observar a actuação (excelente! e o casting foi meu) do Carlos Porto, do Paulo Rocha como sempre passando pelas rodagens, do Vítor Silva Tavares (há tantos anos que não nos vemos, Vítor, e eu gostava tanto de te ouvir falar da língua portuguesa, vê lá tu, eu que até era bom estudante de Românicas!), da Helena e do Manuel Gusmão, da Luiza Neto Jorge (então o filme do César, como é que vai?!), da Eduardo Dionísio que passou connosco o dia da rodagem do Príncipe Real que me tirou o primeiro retrato profissional, eu ajoelhado com um reflector na mão apontado para a cara do Luís Miguel que agitava os famosos sapatos de verniz que eram do Professor Cintra... do António- Pedro, dedicadíssimo, amigo, admirador como ele sabia ser, filmando dois dos planos que estão no filme (e dos mais longos) enquanto o César gastava o subsidio que finalmente chegara partindo para Itália...

Se calhar é por isso, porque fomos fazendo esse filme como quem vai ao café, filma-se hoje, quando é que podemos filmar outra vez, e não havia nem contratos, nem plano de trabalho, nem telefonemas, nem raccords, nem som, nem standby, pois se estávamos sempre juntos, sempre juntos no Monte Carlo, no Monte Branco, na Granfina, no Bar de Letras, ouve lá amanhã filma-se... e íamos fazendo o filme do César porque era essa a nossa vida.

Mesmo.

Creio que é isso o que faz deste filme um filme raro e único (seu único irmão o tão lindo Les Mauvaises Fréquentations de Jean Eustache). O João César filmou efectivamente o minuto do mundo que posso – suprema ambição do cinema que gosta do vento nas folhas, da mão que roça a face da rapariga, do vestido que se cola um segundo ao que o César chamava o seiozinho (só um?) da rapariga, dos encontros e das despedidas e que graças a Deus não sabe como fazê-lo.

Porque o que é incomensurável nos Sapatos, irrepetível, único é que o César não sabia filmar nem montar (e filmou tão bem, benza-o Deus! ), o Luís Miguel tinha pavor da câmara (chorou, chorou, chorou na noite do primeiro dia no snack do PicNic e só dizia não quero mais, eu reponho o dinheiro, isto é uma coisa horrível), o Acácio e o Oscar por lá andavam sempre a cochichar, a Teresa, nervosa, receava ter estragado o negativo...

É este livre não saber e saber amar afinal tão perto de Camões - que o filme tão de perto cinge - que mais não teremos, tão inocentes, tão patetas, tão livres, tão doridos e tão cínicos.

E o olhar aflito do João César, mentiroso que mente e portanto (de novo Camões) diz o mais fundo da verdade, aflito perante a vida estagnada (Este Pais é um cu, um buraco de onde nunca mais se sai, as vezes que eu fiquei a dizer isso) romântico obcecado como clacissismo, aflito com o tempo que passara nos cafés sem andar a filmar as raparigas, escrevendo subtis diálogos com a sua mais linda ortografia em cadernos de quadriculado francês como víamos nos filmes e agora já se vendem no Euromarché...

Porque não éramos patetas nenhuns.

E porque o João César, por entre medos e traições, cobardias e ousadias, referências e descobertas, inventou ali, cada dia e a cada plano, a verdade daqueles seres.

É das honras que tenho na vida o ter andado por esse filme. Que continua a amaldiçoar as minhas relações com César (ó César, quando é que faz Os Sapatos?)

Mas não quero dizer que só naqueles tempos etc... Aqueles tempos eram horríveis e o filme di-lo. De coração nas mãos e mentira nos lábios, é isso o que diz. E há gente agora que gosta de inventar.

 

(Vou dizer uma coisa para irritar o César: tal como me honro de ter trabalhado nos Sapatos, tenho muita pena de não ter carregado latas do Cassiano Branco do Edgar Pêra. Foi isso o que o César me ensinou: há um lado da vida que é cinema. E é nesse lado que o César me ensinou a estar. Se calhar não devia agradecer-lhe, João). 

 

Jorge Silva Melo

 Publicado na revista Arte 7 de Inverno 1992