Um Sorveteiro lusitano muito louco

Estréia no Cine Brasília Comédia de Deus, de João César Monteiro, filme que foi a sensação do Festival de Veneza/95

 

Maria do Rosário Caetano

 

O Le Monde e o La República receberam A Comédia de Deus, filme do português João César Monteiro, estréia de hoje no Cine Brasília, com críticas consagradoras. Para o primeiro, “O filme é hilário, perturbador e sedutor”. Para o segundo, “um filme louco, divertido, extravagante, que hipnotiza”.

A glória de Monteiro começou em Veneza/95. O filme perdeu o Leão de Ouro (ganhou apenas um Especial do Júri), mas conquistou críticos, cinéfilos, anarquistas e fetichistas. Virou a sensação veneziana.

No comecinho deste ano (em fevreiro), a Cahiers du cinéma deu capa ao diretor e ator português, um magricela, careca e feioso, já bem chegado nos anos (nasceu em Figueira da Foz, em 1939). Além da capa, filme e diretor mereceram 14 páginas de reportagem, entrevista e crítica. Os herdeiros de Bazin não se aguentaram de felicidade. A Comédia de Deus é o mais autoral dos filmes autorais. É uma radiografia da alma, dos modos e fetiches de seu criador, encarnado na pele de um sorveteiro lusitano.

Além de escrever e dirigir este longuíssimo (e nem por isso menos delicioso) filme, João César Monteiro encarna o personagem principal, João de Deus, com pseudônimo que popuco disfarça: Max Monteiro. E contracena com raparigas lusitanas de nomes comuns: Joaninha (Claúdia Teixeira) e Rosarinho (Raquel Ascenção). Os personagens: Antoine Doinel (Jean Douchet) cita, obviamente, o alterego de Truffaut ; Linguiça (Dinis Neto Jorge) e similares.

Quem gosta de filmes convencionais deve fugir da Comédia de Monteiro como o diabo da cruz. O filme é de uma originalidade espantosa. O espectador nunca sabe o que virá pela frente. É recomendado – isto sim e somente – a quem está cansado da mesmice do cinema, dos filmes produzidos em série, com fórmulas que somam três minutos de explosões, socos e tiros, a cinco de relativo repouso. Até a próxima explosão.

A Comédia de Deus registra dias preguiçosos na vida de João de Deus, gerente e inventor de iguarias geladas no Paraíso do Sorvete. Entre a sorveteria e o apartamento, o personagem leva a sua vida de solitário irreverente. Possui um álbum, que chama de Livro dos Pensamentos e que adorna com pelos pubianos.

Sua patroa, a voluntariosa Judite (Manuela de Freitas) quer expandir os negócios. Conta para tal com o poder de sedução de João de Deus, que deve cativar os parceiros franceses com sorvete de sabor inigualável. A missão naufraga. O filme segue para um dos finais mais inusitados da história do cinema. Só vendo para crer.

Veterano – O cinema português vivia, até à explosão de João César Monteiro, entre dois nomes de ponta: o octogenário Manuel de Oliveira (Vale Abrahão) e José Fonseca e Costa (Kilas, o Mau da Fita). No Brasil, porém, os filmes destes dois diretores chegam – quando chegam – esporadicamente. Argumenta-se que o público não entende o falar lusitano, acelarado demais para os nossos ouvidos.

Verdado parcial. Perde-se, mesmo, num filme português, de 20 a 40% dos diálogos. No caso de Comédia de Deus dure 2h45. Ao programar o filme, surgiu o dilema: legendado ou não?

Alguns argumentaram que seria ridículo um filme falado em português e legendado. Outros poderaram  que o público não prestigiaria um longa de quase três horas de duração, sem entender 50% dos diálogos. Muita discussão depois chegou-se à solução final: o filme sem legandado segundo a sua versão lusitana. Ou seja: com suas gírias e construções originais. Não sofreria nenhum abrasileiramento. E mais: seria oferecido ao público um glossário com termos menos conhecidos. Tipo pívias são punhetas.

Ao final da sessão, o público concluirá que a distribuidora acertou em cheio e abriu caminho para que os filmes portugueses sejam lançados no Brasil, sem problemas. Legendados. Por que não?

Monteiro, o cineasta que doravante passa a acompanhar Oliveira & Fonseca e Costa nas listas dos cinéfilos, só estreou no cinema em 1968. E com uma curta-metragem Sophia de Mello Breyner Andresen. Em 70, lançou seu primeiro longa: Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço. Seguiram-se Fragmentos de Um Filme-Esmola (72), Veredas (77) e três curtas (O Amor das Três Romãs, Os Dois Soldados, O Rico e o Pobre). Em 81, voltava com um novo longa (Silvestre).  Fez ainda A Flor do Mar (86). Seu sétimo longa-metragem – Recordações da Casa Amarela – fez sucesso em festivais internacionais. Mas não o sucesso de A Comédia de Deus. Este sim, consagrou Monteiro nos circuitos de culto. E colocou-o até no resistente e às vezes estúpido mercado brasileiro.

Filho de uma família burguesa interiorana, João César cresceu anti-clerical e anti-salazarista. Aos 15 anos mudou-se para Lisboa. Nunca gostou de autoridades, fossem elas políticas, clericais ou do sistema educacional. Um de seus personagens deixou claro num filme: “A escola é a latrina cultural do opressor”.

Em 63, com uma Bolsa da Fundação Gulbenkian foi estudar cinema na Inglaterra. Dividiu-se, depois de seu regresso a Portugal entre a crítica e a realização cinematográfica. Colaborou com a revista Trafic, uma disidência amigável da Cahiers du Cinéma. Prepara, agora, seu novo longa, As Bodas de Deus. De João de Deus, claro.

 

TRADUÇÃO

Para preservar a riqueza dos diálogos do filme a distribuidora optou por fazer a legendagem com português original, tal como é falado no filme. Elaboramos este pequeno glossário para facilitar o entendimento de algumas palavras.

Apitadela – telefonema

Lixívia – água sanitária

Retrete – banheiro

Acusa-Cristo – dedo-duro

Giro – legal

Tomar uma bica – tomar café

Tretas – mentiras

Cachuchos – tipo de peixe

Açordinha –comida típica portuguesa

Cona – vagina

Tareco – vira-lata

Mioleira – miúdos

Cachimónia – inteligência

Mirífico – maravilhoso

Lavagantes – tipo de crustáceo

Pívias – punhetas

Talho – açougue

Ralhetes – broncas

 

 A COMÉDIA DE DEUS – Portugal, 1995. De João César Monteiro. Com Max Monteiro e Claúdia Teixeira. No Cine Brasília. Duração: 2h45.

 

Maria do Rosário Caetano

Publicado no Jornal de Brasília a 24 de Novembro de 1996