Há três décadas que quase todo o cinema português vem trilhando caminhos muito difíceis e arriscados, que tantas vezes levaram a fracassos ou a exibições culturalistas, ou mesmo a bluffs e a fraudes. Muito poucos cineastas justificaram os altos voos em que se metiam, e, mesmo esses, nem em todos os filmes. Mas À Flor do Mar é um deles. Por isso, a menos que se tenha uma aversão irrecuperável a qualquer filme português que afirme a sua diferença em relação aos modelos do cinema mais estandardizado, vale a pena ir ver e ouvir um dos nossos melhores filmes de sempre. Há três anos, os franceses fizeram bicha para o ver, o Libération dedicou-lhe uma página inteira, as revistas de cinema exaltaram-no. Isto não é, por si só, um argumento. Não: desta vez, o argumento é mesmo o filme.
Tudo se centra em Laura, a sereníssima personagem interpretada por Laura Morante,
cheia de graça e de cambiantes, cujo jogo César Monteiro aproxima do sublime. É uma Italiana que foi casaria com um pintor português, de quem tem dois filhos, e que volta a esta ponta do Mediterrâneo para passar férias com a família. Numa praia de Tavira encontra, ferido, um americano que deu à costa, e paira a dúvida se ele não será um assassino. A atracção entre ambos desorganiza-lhe a vida, mas organiza o filme, deixando no entanto espaço ao que é essencial: as imensidades, que o cineasta sabe criar magistralmente.
É que César Monteiro tem a capacidade rara de gerar, com minúsculos pretextos, a ficção. E tem a capacidade de sustentá-la, sem nos desinteressar, graças à qualidade das suas imagens, dos seus diálogos, da música, da banda sonora, da noção de ritmo que tem como nenhum outro português. Tudo isso nos fere e nos consola, e fica a trabalhar em nós durante muito tempo depois de vermos os filmes. Nele, as coisas não são apenas ditas, as coisas são. Inventadas para nós, vivem ali pela primeira vez, porque neste cineasta, ao contrário do que acontece em muitos dos seus colegas, a invenção (ou a descoberta) é mais importante do que a retórica de partida. Ele quer fazer nascer o que não existia, e nós temos sorte, porque podemos assistir a essas epifanias depuradas.
À Flor do Mar é um bom exemplo da abertura de César Monteiro, que muito renega mas também muito procura e inventa. Estão lá os traumas da revolução, os restos decadentes do pathos romântico (o pintor que se suicidou queimando todos os quadros, a revolução que acabou, as árias de ópera, algumas lamentações sobre os frutos que vão deixar de ter o seu sabor...), mas o filme é dominado pela coragem de Laura, que diz: «Eu quero viver, não quero permanecer amarrada a um sonho absurdo. Não se pode regressar ao fascismo e recomeçar tudo de novo.» Não quer fantasmas, novos ou velhos. «Um destes dias, vou ter de arranjar coragem para esgravatar nos escombros. O que é que não ardeu em mim? Essa é a questão essencial. Todos os sobreviventes têm de lhe dar resposta.» A resposta, claro, pode servir para enterrar essa parte que não ardeu (consumindo-a ou coleccionando-a, tanto faz), ou para a relançar para a vida, sem maiores problemas de culpa ou de traição. Na sua maturidade curiosa, serenamente inquieta, Laura parece estar cá para ter coragem, ela que (apropriando-se da frase de Camilo em Amor de Perdição) tem ânsia de viver, mais até do que ânsia de amar (e diz a frase em italiano, porque uma das graças dos filme é o jogo entre várias línguas, levado a um extremo de subtileza em toda a cena em que o americano adormece as crianças).
Como já passaram dez anos sobre a feitura deste filme, e portanto já sabemos alguma coisa sobre o futuro dele, podemos lembrar como mais tarde César se fixou, pelo menos nos seus últimos filmes, num equivoco voyeurismo, e até no fetichismo dos objectos sexuais. Em À Flor do Mar, César já tem uma breve aparição no ecrã, em que, com metralhadora de terrorista, procura levantar as salas das senhoras. A infinita vantagem, a meu ver, é que neste filme o cineasta ainda não se identificou com essa personagem, é muito mais homem do que ela, não desistiu de viver nem se refugiou a coleccionar pintelhos. Pelo contrário: este é um filme dominado pela luz e a clareza.
Claro que a vida (e este filme como ela, com ela) é feita de tensões entre superfícies e profundidades, distância e proximidade, descrição e envolvimento, contemplação e ironia, entre o amor e as suas circunstancias. A história e as suas guerras têm de estar presentes, mesmo que aquilo que interesse às personagens e ao filme se passe do lado de cá desses acontecimentos: e o caso é que a intemporalidade, mesmo a sensualidade, dos sentimentos e dos lugares, saí reforçada desse confronto com os assaltos efémeros.
Repare-se ainda nas tensões que César Monteiro cria entre o seu estilo literário muito próprio e o aproveitamento da oralidade característica, por exemplo, dos locutores da rádio, ou dos polícias (que ainda sobressai mais quando vem dos aparelhos, transístores ou walkman). Repare-se na liberdade com que, para resolver o problema dramatúrgico de fazer o americano atravessar as barreiras da polícia, ele mistura Dante e Dons Rodrigos - uma delícia. Note-se como os planos longos e fixos existem porque são fortes, e não escondem qualquer incapacidade de conceber as cenas ou os movimentos
de câmara. Para quem tivesse dúvidas, é exemplar, na mise-en-scène e no travelling, a cena em torno do poço. Ou a cena quase final, em que a casa e as luzes se fecham de modos surpreendentes. Podemos então concluir, como uma das personagens: «It's only strange to strangers.». Eis um filme que só é estranho para aqueles que defenderem cegamente que nunca vale a pena aventurarem-se fora dos seus territórios conhecidos, para aqueles que não queiram de modo nenhum deixar-se contagiar pelo que é estranho e diferente. E com que sábia sensualidade À Flor do Mar, por estranho que pareça, nos toca e contagia!