Como é possível, como foi possível Portugal estar dez anos sem exibir este filme?
Este filme chama-se "À Flor do Mar", e por incrível que pareça (que pareça depois de o vermos), Portugal deu-se ao luxo (ou ao desperdício) de o possuir como património cultural... e não o mostrar a ninguém. Não é de todo verdade: a Cinemateca exibiu-o uma vez, a televisão passou-o outra, e o filme representou mesmo o País em vários festivais no estrangeiro, chegando a estrear-se, com êxito, em França.
Aqui... Aqui foi o que se sabe. Realizado em 1986, só agora inicia, finalmente, a sua carreira comercial em sala.
Vale mais tarde que nunca — dir-se-á. Pois vale, mas este atraso é um crime. «À Flor do Mar», se não é uma obra-prima, anda lá perto, com a mais- valia de ser (como todas as obras-primas ou lá perto) um «objecto» único. A vários sublime.
Gastei já 900 e não sei quantos caracteres do meu parco espaço e ainda não disse nada. Eu sei. Mas escrever é também chamar a atenção. E é urgente chamar a atenção para «À. Flor do Mar». Pelo que ele é enquanto cinema, pelo risco que corre ao ter sido estreado em Junho, pelo facto de, no entretanto dos dez anos decorridos entre a feitura e a estreia, o nome do seu autor ter ganho mais fama do que proveito junto do público (essa entidade abstracta que não se sabe o que é, mas através da qual se contabilizam bilheteiras).
Tudo isto me imponho dizer antes de referir que o autor (autor mesmo e não só realizador e argumentista) de «À Flor do Mar» dá pelo nome de João César Monteiro. E aqui corre o filme um dos riscos maiores, o de ser por alguns olhado de lado... e menos visto, assim, do que me merece. Porquê? Porque César, desde «A Comédia de Deus» (ou mesmo desde «Recordações da Casa Amarela» e «O Último Mergulho»), está identificado com um certo cinema.
Amado... ou detestado, num maniqueísmo tão radical quão redutor. E eu não escrevo (mentalmente não escrevo) para quem não precisa do meu texto para ir ver «À Flor do Mar». Escrevo para os outros (quem?), esses outros que talvez sem isto que escrevo não despertem para o filme (os jornalistas têm sempre ilusões destas).
Digamos, pois, que escrevo para quem pensa que César (ou o seu cinema) é todo ele tal qual «A Comédia de Deus». Ora não é, ainda que entre esse fabuloso filme e «À Flor do Mar» haja uma evidente comum autoria — todo o grande criador, de algum modo, faz sempre a mesma obra. De algum modo... Tão de algum modo que de «À Flor do Mar» se pode dizer que não é outro César, mas César ele mesmo, pelo seu lado não sombrio, pelo seu lado luminoso, solar.
Solar, porque raramente um filme português o foi tanto como este. E, ao mesmo tempo, raramente um filme português, assim tão luminoso, foi capaz de perscrutar as sombras da alma. Ele há, aqui, neste «À Flor do Mar», rodado em Cacela (Algarve), três mulheres com a vida suspensa. Na penumbra, à luz do sol. E ele há um Ulisses que vem dar à praia. Um raio de luz, vindo do escuro. Depois... Depois não dá para contar — um filme vê-se, não se conta. E mesmo que o contasse, como contaria do adágio de João Sebastião Bach que pontua musicalmente esta obra? E de Laura Morante, como a contaria, enquadrada no oval de um espelho, como se fora, em simultâneo, ela e a representação dela, a pouco e pouco desfocada? E (para mais aqui, nesta página a preto e branco) como contaria desse azul que se derrama sobre todo o filme? E de Manuela de Freitas, nossa actriz maior, que interpreta mesmo quando respira, como contaria? E de Teresa Villaverde, adolescente e ainda não realizadora, como contaria da sua inocência frente à câmara?
Não. Não contarei nada. Não contarei nada deste filme, que, esteticamente, estruturalmente, nos surge quase como a antítese dos mais recentes de João César Monteiro. E que, no entanto, é (d)ele também; nem de nenhum outro cineasta poderia ser. Porque, pelo lado da luz, já lá estão as obsessões do autor, essa sua desmesura que nos é tão incómoda, a nós, educados a lidar com a «normalidade».
Sim, em «À Flor do Mar» está lá César, autor. E, fugazmente, até lá está ele como intérprete (secundaríssimo intérprete mas já perturbador, a fazer adivinhar o protagonismo dos filmes posteriores, em que surgirá como João de Deus).
E, sempre, em cada palavra. César igualmente marca presença como escritor, autor dos diálogos, também eles luminosos. Mesmo quando uma mulher lembra à outra que «fósforo apagado não torna a acender-se». Não sei por que, de tantas e tão belas falas as deste filme, esta não esqueço. Não sei. Talvez porque a chama de um grande cineasta como João César é luz que não se apaga. E sempre, sempre ilumina. Quer quando com as trevas se confunde, quer quando se dá a ver. Como se César soubesse (e sabe) que o dia é irmão da noite. E assim, ou vice-versa, sempre a ela haverá de suceder.
À FLOR DO MAR. Portugal, 1986. Realização: João César Monteiro. Interpretação: Laura Morante, Philip Spinelli, Manuela de Freitas, Teresa Villaverde. Duração: 145 minutos. Distribuição: Atalanta. Sala: Ávila.
Rodrigues da Silva
Publicado no jornal Jornal de Letras a 3 de Julho de 1996