Aviso ao público e à pública (res)

 

É sabido que:

— Portugal não cabe em Lisboa;

— as raízes dos povos são denunciadas pelo legendário neles;

— "O cinematógrafo faz uma viagem de descoberta num planeta desconhecido" (Bresson);

— para que Portugal se redimensione é também necessário o cinema português:

— etc.

Por estas razões, urge anunciar a importância de Veredas.

Se um grande filme assinala necessariamente um autor de cinema. João César Monteiro está assinalado. Depois desta, já não pode safar-se às responsabilidades que assumiu.

( É o que de provações atravessa um cineasta em Lisboa: escalar os montes Carlo sem ficar estropiado: proteger a potência criadora entre paroladores onanizantes: resistir aos maus pensamentos de esplanada — "Vou filmar em A para mostrar a B e C que já vi D porque li E". E ainda: levar a melhor sobre as próprias dúvidas, próprias de todo o criador, mas reforçadas por um meio- ambiente que não perdoa  nunca aos que conseguem.)                    

Certo é que João César Monteiro, regressado ao campo de batalha do cinema (as filmagens), desta vez venceu um a um, os adversários poderosos que tivera o desplante de ir desafiar, saltando (como saltou) de um meio audiovisual e cultural ultra -urbano para os grandes espaços (onde montanha, planície, rio e oceano, não só são diferentes mas se contrapõem); mergulhando (como mergulhou) nas secretas catacumbas da ancestralidade.

O género de campanha que Veredas constitui é aquele que mais mortos e feridos provoca nos semicineastas que a ele se metam. Há segredos que só se entregam aos habitados pela força, nata e vulnerável, do rigor poético. E quem vai ao velo de oiro e falha na empresa volta definitivamente tosquiado.

João César Monteiro venceu ainda: as dificuldades da boa fotografia (os dois gumes disso), da sonorização indirecta e sem ir ao estrangeiro: da direcção de mui diferentes luzes e animais; dos graves obstáculos que se interpõem entre as profundas populares no seu habitat e ao trazer, do que esse povo exprime, ao écran sonoro.

Por fim, o que ele conseguiu foi o seguinte: iluminar, com um relâmpago fortíssimo, o espaço português, que é norte -sul, realçando nele múltiplas dimensões. Assinalando de passagem que, no tempo do filme, há movimento de revolução (o tratamento da luta de classes no Alentejo: modelo de como em poucas palavras é que se diz tudo).

Veredas: potência impar da sobriedade.

Cumpre agora travar por este filme uma luta tão perseverante como a que, merecidamente, lançou Trás-os-Montes no país e no estrangeiro.

...  é  que  Veredas  vai  muito mais fundo e longe do que possa supor-se à primeira vista. E eu ainda só vi o filme uma vez.

Nuno Bragança

Publicado no jornal O Jornal, a 5 de Junho de 1978