O filme que está perto e o filme que está longe

 

«Veredas» de João César Monteiro é mais um filme que rompeu o ostracismo a que tem sido votada muita da produção nacional após o 25 de Abril. Continuam imensos   trabalhos por exibir e, porventura, alguns muito importantes, mas o panorama parece ser mais positivo do que há uns meses atrás. «Veredas» é uma peregrinação poética  por um Portugal que não conhecemos, uma espécie de pausa à beira da estrada onde, eternos caminhantes, nos retemperámos da dureza da jornada.

Num país onde geralmente a imaginação popular é fabricada pelos escribas da cidade, «Veredas» vai às verdadeiras fontes como o já haviam feito, cada um à sua maneira, António Reis e Fernando Lopes. Mas nesta longa-metragem de César Monteiro vem interpor-se, contaminando as águas do rio, outros discursos, um ideológico e outro literário ou, palavra mais feia, literalizante. Se por um lado isso é mau pois nem sempre se mantém a frescura inicial, os discursos que se cruzam ao longo das «Veredas» poderiam abrir o leque de leituras do filme tornando-o, naquele momento belo e triste em que se separa do seu criador,  propriedade polemizável dos que a ele assistem.

Mas, independentemente de se gostar ou não gostar («Veredas» revela um talento, o  tempo dirá se mostra um cineasta), há que pensar um pouco — ou tornar a pensar —   no problema da comunicação do filme com o público. Nos duros tempos que se avizinham e que estão para ficar (foi Duverger que escreveu que vivemos, mais do que   uma crise, uma situação histórica de dificuldade com que teremos de coexistir durante longos anos), os cineastas portugueses que quiserem ficar em cena terão de pensar muito a sério na maneira como hão- de reconquistar  um  público  perdido  (preocupação idêntica, aliás, foi expressa por Fernando Lopes apesar da boa carreira de «Nós por cá todos bem»). Assistimos a «Veredas» conquistar a quase totalidade da  critica e alguns intelectuais, que é o que conta para os sucessos de estima, mas a não funcionar junto das plateias. Por outro lado, tudo parecia a favor do filme... menos os espectadores.

Dir-me-ão que a cultura popular que surge em «Veredas» também é aristocrática nas suas formas expressivas e que é susceptível dum certo hermetismo. Ou ainda que as  pessoas terão que estar profundamente documentadas, para além das citações dos trabalhos de oficiais do mesmo ofício (curioso como ninguém falou em Nicholas Ray,  apesar de toda a comunhão com a Natureza que banha o filme) dominarem o material acumulado em «Veredas» que reúne, por exemplo, falas em mirandês (das duas vezes  que assistimos à projecção não tinham legendas) e textos de Maria Velho da Costa. Isto apesar de os filmes não terem necessariamente que ir ter com as pessoas pois já Vittorio de Sica, em «Humberto D», demonstrava que eram as pessoas que tinham que ir ter com os filmes.

Tudo isso estará certo embora seja complicado. O problema é que, mesmo sem entrar na enumeração das muitas razões que justificam que um filme tenha poder de comunicação (o público tem consagrado obras complexas e mesmo «difíceis» e, não merece, portanto, o epíteto de impreparado), vivemos um instante psicológico onde precisamos de comunicar com facilidade e sem ser através de sinais sugeridos a meia dúzia de amigos de confiança. O cinema volta a ser, em grande medida, «mass media», recupera mesmo multidões perdidas. Será possível ao cinema português, sem perder a dignidade artística, participar, pela sua parte, nesse processo de recuperação?

«Veredas» não responde afirmativamente a tal pergunta mas não é essa a sua intenção. «Veredas» é muito pessoal para funcionalizar este ou aquele objectivo. Será isso talvez um sortilégio, sem deixar de ser um perigo. O filme de César Monteiro «expõe-se» e isso é um dos seus aspectos mais simpáticos apesar de haver gente (está no seu direito) que troveja ferozmente contra ele e outros, não menos ferozmente, que o defendem. Também estão no seu direito.

Temos, para nós, que o filme não saltou o tal obstáculo das plateias a conquistar — que continua a ser o problema n.° l dum cinema já abalado por uma longa série de crises, desconfianças, guerrilhas, contra- guerrilhas e rivalidades.

É vulgar circular também o argumento de que são filmes como «Veredas» que fazem o levantamento do país, que registam vivências culturais que, amanhã, com a invasão do plástico e do «transistor» estarão perdidas.  Mas parece-nos  igualmente óbvio que não é essa a intenção do autor. «Veredas» é proposta poética, é necessidade de redescobrir um rumo («deixa-me guiar os teus  sonhos»   diz-se logo no principio).

Porém, em determinadas fases, o filme abandona a sua mensagem poética e não conserva a unidade e a elasticidade suficientes para permitir a  introdução de elementos retóricos, explicativos ou até «inconformistas». É o caso dos «Achtung!» e dos «To be or not to be» durante a missa. Não é fácil ser Buñuel em Portugal em 1978. Que eu saiba, nem sequer houve protestos pela irreverência.  Passam-se  coisas  bem  mais graves e, mesmo assim, o cor-de-rosa é a cor da moda.

«Veredas» vai buscar inspiração a uma das nossas mais belas lendas, a da Branca Flor. É um filme por vezes fotografado duma maneira admirável por Acácio de Almeida (temos hoje — é preciso dizê-lo — talvez melhores operadores do que cineastas) e ao vê-lo, embora não esteja sempre de acordo com o seu pretensiosismo  disfarçado  de  ingenuidade,  pareceu-me  «ouvir»  os cânticos das raparigas que, nas aldeias, deixam rolar as suas vozes ao longe de encosta em encosta. O César Monteiro inspirado, deixando flutuar a sua sensibilidade talvez seja superior ao César Monteiro que fabrica. É que, no primeiro caso, os horizontes rasgam-se, a matéria de que são feitas as lendas e os sonhos vêm ao de cima (como no caso  da extraordinária  «história moral» do burrinho) mas, quando puxa da gramática, entorna o caldo.

O perigo será de virem dizer que o criador fez o filme só para si e se esqueceu dos outros. Mas não será sempre um bocadinho assim? O problema é que, em última análise, isso às vezes resulta e outras não.

 

José Vaz Pereira

Publicado no O Jornal, a 12 de Maio de 1978