Sob a insígnia do símbolo

 

Está em exibição no «Quarteto» um  filme  português.  Chama-se «Veredas» e foi realizado  (ou fabricado, como prefere o autor) por João César Monteiro. Um filme português não é coisa que atraia muito o publico gato escaldado. João César Monteiro, é  um nome que pouco dirá. E os textos  dos críticos normalmente pouco ajudam, porque se instalou nos ditos (críticos) a patriótica convicção de que devem dizer bem de qualquer produto nacional e convencer a maralha de que todos os escudos (e são já  algumas dezenas) gastos em bilhetes para ver filmes portugueses são sempre bem empregados. É uma caridade e quem dá aos pobres (realizadores lusos) empresta a Deus a quem pertence o futuro e,  portanto, um dia, fará o milagre de nos brindar com uma obra-prima. Só que o publico não vai normalmente ao cinema para fazer caridade e  pouco acredita nos juros que colherá com o seu dinheiro. Por isso, diz mal e não vai.    

«Veredas», de João César Monteiro, não é  certamente o filme que reconciliará o grande publico com o cinema português. O seu autor tem afirmado muitas vezes que pouco se importa com um e com outro e que não veio ao mundo para salvar nobres causas (essa do cinema português, por exemplo) nem para ser seguido por multidões. Os seus filmes são filmes para gente bem educada: com certas leituras, certa música, certos quadros, certos filmes. Entroncam numa família, de cineastas  que  se  preocupa  mais  com o que tem a dizer do que com o que o espectador gostava que eles dissessem. De Vigo, a Duras são muitos e estão no seu direito, como no seu direito  está o publico de não gostar deles.

Mas os realizadores que citei são franceses e César é português. Falta-lhes, por  isso,  o  que  os outros têm: uma quantidade de gente já bastante sofisticada, ou gostando de se dar ares disso, que enche as salas (mesmo assim, assim -assim) e permite que tais  filmes  existam,  porque  o dinheiro  que  custam  é  tanto como o dos outros e normalmente os autores não são milionários tais  filmes existam,  porque  o nem têm mecenas ao pé da porta.

E o português mesmo quando sofisticado,  ou  gostando  de  se dar ares disso, não pratica com os santos de casa, que não têm o nome impresso em prestigiosas revistas estrangeiras.   Além  disso, como ninguém acredita em ninguém, a ignorância é grande e a competência não é maior, nunca se poder estar certo de que os santos o sejam mesmo e não bonecos pintados a fingir deles. Daí que os azares se somem e na noite portuguesa todos os gatos (os brancos, os pretos e os malhados) se empardecem até que  emparveçam.  Ser cineasta português, é então muito perigoso? Como dizia o outro, é sim, minha senhora, e poucos sobrevivem. Mas também não exageremos (coisa, a  que a referida espécie e propensa): não é nem mais nem menos do que ser qualquer outra coisa em Portugal, a começar em artista e  a acabar em simplesmente homem   ou simplesmente mulher (ou vice-versa, o que até é mais correcto).     

Quando acaba, este preambulo?

Não é preambulo. Veredas é um filme sobre tudo isto: sobre João César Monteiro; o cinema, o cinema português, o português. Portugal.  É só outra maneira de falar destas questões, e ainda da boa educação, do bom gosto, da cultura, dos seus contrários.

Como?  Como qualquer pessoa que não empardeceu ou emparveceu  e,  por que  houve um  25 de Abril  pelo  meio deu  por  si a pensar que alguma coisa devia haver neste país e que tinha que encontrar modos de procurar caminhos ou veredas que o levassem a percebe-lo melhor e a perceber-se melhor. E partiu, para viagem  dessas  (no genérico do filme vê-se um quadro de Menez chamado "L'invitation au voyage") com as armas e as bagagens que tinha trinta, e tal anos de existência lusíada,  mais  alguns livros    alguns discos, alguns quadros e muito cinema. Para ir ao encontro de quem  tinha  anos  de existência muito diferente, não lera esses livros, não ouvira esses discos e não vira esses quadros e esses filmes. E dai, um artista português — cineasta, por sinal — enviado para Trás-os-Montes, para o Alentejo, para as Beiras, nos anos de 75 e 76 a filmar prosas dos trágicos gregos e dos clássicos franceses e ingleses dos românticos  alemães  e  vienenses  deste  século , com  alguns portugueses de dantes,  e  de agora  à    mistura, enquadrar algumas pinturas de Giotto, Boticcelli, Bronzino, Caravaggio, Dreughel ou Klimte, ouvir Beethoven, Bruckner e Berg e  ter, entre ele e o que viu, o que antes dele viram, em muito outros contextos, gente de cinema, como Maranu, Von Sternberg, King Vidor, Visconti, Godard, Garrel, Duras ou António Reis.

E no intervalo de pensar e ver isso,  pensou  e  viu  uma  certa imagem de Portugal e viu, também, o «portugual desconhecido» sempre sempre à espera de si, com suas muitas e renovadas maravilhas.  E  «lacrimejou  de contentamento a olhar para todos esses passarinhos»: os que já trazia  da  capital  e  os que os olhos da capital lhe faziam    ver na província onde peregrinou.

E,  com tudo isso,  realizou  um filme,  virado  muito  mais  para si   próprio   do   que   para o : «exterior» (passe o disparate) e fabricou novas imagens de antigas associações, antigas referências,  antigas reminiscências. Do que havia antes ficou o depois. Ao contrário dos habitantes da famosa caverna (ou como eles, segundo outra, leitura) o casal do filme (cineasta) não viu outra luz. A luz antiga projectou diferentemente as mesmas sombras. As únicas que sempre e unicamente viu.      

É assim que este filme é das obras mais idealistas  (sem que eu dê ao termo qualquer sentido pejorativo) já saídas do cinema português. E, dentro do idealismo, assume, com rara consequência os caminhos do romantismo e do seu espirito, na paradoxal   reconciliação entre a experiência sensória e as ideias. «O paradoxo principal do espírito romântico» — dizia Goethe contra Schiller —  «é  o  facto  de  ansiar por intermédio da sua própria consciência histórica e introspectiva virtuosidade». Como nos grandes    românticos, do que se trata em Veredas  é da transposição da alegoria, para o símbolo, sendo sob a  insínia do símbolo que esta  obra  decorre.  Reservando ironicamente a paixão e vincando fortemente a consciência de si próprio (como aconselhava Diderot  no «Paradoxe sur  la comédien») César Monteiro dissolve os signos e as estruturas no valor ideográfico e plástico dos símbolos encontrados, como sucede, na linguagem romântica de cineastas e, particularmente, em King Vidor, que mais uma vez uma obra de César me fez fortemente lembrar. (Repare-se, por exemplo, num e noutro, na carga simbólica, associada aos elementos terra, ar, água, fogo).

Sobre essa carga simbólica, ou simbolizante se parte para uma peregrinação imagética e imaginária em que nada sai fora do quarto, pois que o real é convertido em sonho e o poder mágico do cinema é utilizado exactamente para essa conversão.

«A  peregrinação  imagética » implica um  dos  aspectos  mais evidentes e mais ambíguos deste filme: a sua beleza formal, que talvez seja o que mais imediatamente cativa, o espectador. Mas o  belo é de  três  ordens: é o bonito  do  tal  lado "fotógrafo   amador» a que João César se refere numa entrevista e que o faz na sua já citada  frase   «lacrimejar de contentamento a olhar para o passarinho» do real: é o bonito do  «como vais de bonitinha»  de uma canção do filme, ou seja o que resulta do próprio  prazer de  exibicionista (explicitamente dado  nalguns planos— como os do barco da Branca- Flor — que não são demais  por  que assentam nesse prazer e no correlativo prazer   «voyeur» do espectador que «quer ver mais»): e é finalmente o belo que resulta, do efémero forçoso (pelo cinema  e pelo sonho, se as duas coisas forem diferentes) de cada plano e cada sequência, que se traduz sua prolongada  morte  (através  de sucessivos ecos ou duplos) e na dolorida  atenção à  dificuldade.

De tudo isto vive a peregrinação imaginária que assenta, neste filme em figuras de repetição e em antigas obsessões especulares.  «Veredas»,  pode  ser  visto como o desenvolvimento do tema de Borges da revolta dos duplo, que figurava num outro   filme de César Monteiro «Quem Espera por Sapatos de Defunto». Todas as sequências  deste  filme  têm o  seu  «duplo- revoltado», por vezes  aparentemente   (os   dois  banhos) por vezes recorrendo a mediação de critérios estéticos divergentes (o padre das sequências  do  Alentejo rimará com o diabo  do  episódio  de  Branca- Flor).

A certa altura do filme, os protagonistas (projecção do realizador) atravessam uma ponte, que vai estabelecer a transição para uma outra paisagem e um outro discurso. Há aí uma evidente alusão a Murnau e ao Noaferatu (expressamente citado noutro filme de César): «quando atravessaram a ponte os fantasmas  vieram  ao encontro deles».

Se assim se estabelece a inseparabilidade da visão (tudo o que será depois decorre sob o signo do visto antes, pois que a mão de Orfeu é enorme dextra)  é também certo,  e  pela  mesma razão, que a reciproca é igualmente verdadeira, anulando uma dimensão temporal, cuja analise seria,   aliás,   das  mais   curiosas  a fazer a propósito deste filme.

Os  fantasmas estão desde o inicio condenando ao eterno retorno o personagem agente  (a mulher, e seus prolongamentos simbólicos,  água,  mar,  etc.)  e anulando, do mesmo passo, qualquer sentido de bússola ao fio que ela, Ariane, segura entre mãos.  Ao contrário aos mitos clássicos ou da Atena de Esquilo que surge no filme, ela não sabe de  progressos, de portas, de saídas. E por isso, o parto final é um parto sem nascimento,   onde as palavras invocatórias se exercem sobre um vazio,  remetendo sempre o «couple» à sua essencial divisão e à sua essencial esterilidade.           

 Filho  e fruto serão sempre roubados. («Não vi criança. Só vi lobo»). As veredas são caminhos que levam a parte nenhuma.                    

A interrogação sobre a cultura dissolve-se  na mesma cultura e na sua deserta inutilidade para compreender seja o que for. Ou de como a peregrinação de César Monteiro  termina  exactamente como a de Mendes Pinto, quatrocentos anos atrás: se nada disto   servir para nada, a culpa, será «dos canos e não da fonte». Sem que a César Monteiro interesse reabilitar  a  primeira,  que  só através dos segundos  até  nós chega.    

Como diziam, os italianos do Século XVI «assaltai os antigos e trazei os despojos para casa.». Que faremos, agora, deles, que os vimos tão belos, tão nossos? Como mobilaremos com eles o que nos resta?       

De essa beleza, se esgotar em mais do que a sua própria carga emocional.  Um  para  quê sem razões nem  finalidades.

 

João Bénard da Costa

Publicado no jornal Diário de Noticias, a 31 de Maio de 1978