"Veredas" de João César Monteiro

 

Veredas: o traçado exíguo e difícil do percurso, geografia exacta de uma

ressurreição.

Enveredar: acto de delinear a progressão do texto amoroso, dádiva do que vê.

João César Monteiro

 

Desiluda-se quem procurar em «Veredas» um testemunho sobre o que comummente se chama realidade. Desiluda-se, também, quem, em «Veredas» vá à cata de lendas, histórias tradicionais ou actuais. A realidade, as lendas ou as histórias lá estão, mas descontadas ou, melhor, revisitadas por um trabalho onárico (ou sonâmbulo?) mas agudamente atento como simples material- pretexto para se arribara um outro porto.

Quem conta um conto, acrescenta um ponto, diz-se. Pergunte-se, pois, se o ponto é bem acrescentado. Por mim direi que sim, do ponto de vista do contador e adiantarei quaisquer reservas do ponto de vista do ouvinte- espectador. A estrutura narrativa de  «Veredas» não é fácil: é espontaneísta, por  vezes aleatória com ar de descosido. Mas não são os sonhos assim? Não são, eles próprios, como o marulhar das águas, de ida e volta trazendo surpresas tantas vezes perturbastes: um contador de histórias deslizando em mar de flores, ou uma fonte- carranca milenária, uma sereia (Branca- Flor) majestosa em majestoso e deslizante barco, quiçá uma memória de Klimt, numa Palas Atena?                         

«Veredas» é um filme de memórias vividas e imaginadas, cuja lógica interna é a lógica da liberdade de variar de ponto de observação: é um filme- poesia e não em filme-testemunho ou um filme-antropologia menos que tudo, um filme- político (e aí intervém o sarcasmo).É, sobretudo, um filme sobre um mundo belo, onde perpassam pessoas que realizam, só, actos rituais.

Actos rituais? A dança animalista da raposa,  o banho das irmãs de Branca-Flor e de  Branca-Flor na ribeira a história dos ladrões, do burro, da albarda e do dono, a história   de Maomè em que, intervém Tarik (vós sabeis onde é a Península Ibérica?) contada enquanto lentamente, amorosamente se racha lenha, mais tarde um outro banho, noutro ribeiro, o banho de amor de Branca-Flor e do pastor, as caminhadas sem rumo (ou com rumo?) pelos mais belos campos do mundo, perseguições sem destino e encontros- desencontros. Uma mulher assassinada e devolvida à terra ali mesmo; um parto de dores fecundo. A natureza em comunhão com os homens (nó reatado só na memória e no mito?) que é espaço, vasto, aberto e cheio de grandeza que são os gritos das aves, tantas, que são assobios e balires incansavelmente repetidos, da memória de uma cultura pastoril que são águas que correm, deslizam ou se precipitam de alturas  incomensuráveis ou beijam areias; que são ainda muralhas de rocha ou mares de flores, ou o voo de aves de rapina. Ou animais. Atena e o coro das Euménides. Os planos fixos e longos e só com o movimento estritamente necessário. A barca de Branca- Flor. A cor opulenta. A memória. A cor. As palavras que, perdendo a compreensão imediata fluem como música que se soma a ventos e nos transporta para além do seu significado imediato para significados outros. O dialecto mirandês e Maria Velho da Costa e Domingues. Tudo e quanto mais, que sei eu, faz, deste belo filme, um filme a descobrir, com empenho de quem for curioso e que terá, ao fim, como prémio,  algum tesouro, enterrado- prometido, por alguma moura- encantada ,sob as raízes de algum milenário castanheiro.

Duarte Nuno Simões

Publicado no jornal O Jornal, a 5 de Maio de 1978