Português, cineasta 50 anos de idade 

 

COM o seu mais recente  filme, Recordações da Casa Amarela, João César Monteiro regressa ao convívio do público que abandonara no início desta década com a estreia de Silvestre, de l 981. Entre  estes  dois  filmes  rodou Á Flor do Mar, de 1986, não estreado.

Como se sabe, o seu filme mais recente foi apresentado no Festival de Veneza do corrente ano e, antes de premiado com o Leão de Prata para a melhor realização, na sua apresentação César Monteiro concluía afirmando: «... Sou português. Lixaram-me» (da Imprensa). O caso dele, com seis longas- metragens em vinte anos, pode justificar e ilustrar a afirmação, tanto mais quanto, sabe-se este seu último trabalho foi rejeitado  pelo júri do IPC no concurso a que se apresentou. No entanto, cá por coisas, e até porque sempre achei que, «como quem quer a coisa», César Monteiro sempre soube, desde as suas criticas do cinema e outros textos dos anos 60/70, ao que andava, resolvi-me a tirar a contra- prova passando um olhar pela carreira dos cineastas do chamado «cinema novo» português. Fiz consulta de publicações idóneas (Cinema Novo   Português 1960/1974, ed. Cinemateca Portuguesa, 1985; Prontuário do Cinema Português 1986/ 1989, de José de Matos- Cruz, ed. Cinemateca Portuguesa, 1989) e de seguida dou conta das conclusões a que cheguei:

Fernando Lopes: cinco longas- metragens em 29 anos de actividade, todas elas estreadas. Paulo Rocha: cinco longas- metragens em 26 anos de actividade, das quais a última a ser estreada em Portugal data de 1966. António de Macedo: onze longas- metragens em 28 anos de actividade, algumas não estreadas. António da Cunha Telles: quatro longas- metragens em 27 anos de actividade, algumas não estreadas. António Reis: três longas- metragens em 26 anos de actividade, das quais a última ainda não  estreou. José Fonseca e Costa: sete longas- metragens em 23 anos de actividade, maioritariamente estreadas. António- Pedro Vasconcelos: cinco longas- metragens em 22 anos de actividade, maioritariamente estreadas. Alberto Seixas Santos: três longas- metragens em 21 anos de actividade, das quais só a primeira estreou. João César Monteiro: seis longas- metragens em 20 anos de actividade, algumas não estreadas.

Não inclui nem curtas nem médias- metragens, apenas considerei os filmes não colectivos e só excepcionalmente contei com os trabalhos feitos para a televisão.

Este panorama, bastante descoroçoante, embora apenas respeitante a alguns nomes considerados mais importantes do «cinema novo» português, em principio aqueles que são mais conhecidos e se mantêm em actividade, permite compreender que César Monteiro, na sua aparente boutade para o Festival de Veneza, bem podia ter utilizado o plural, que não seria majestático. Numa altura em que entre nós, e muito bem, se tende a valorizar a «geração de noventa» que está aí à porta, convém não esquecer o que aconteceu a tantos cineastas cheios de talento por múltiplas e desencontradas razões. Parafraseando o título do filme de um deles, oxalá que os cineastas que aí estão a chegar venham a  ter uns começos de carreira menos complicados que os deles, e oxalá que o futuro dos homens do «cinema novo» lhes venha à permitir o que o passado para a    maior parte dificultou ou impediu.

Talvez deste modo tenha cumprido a minha promessa de há tempos de aqui falar da geração de sessenta do cinema português. É possível que só volte à questão a propósito de casos muito concretos e com objectivos muito circunscritos. Quando isso acontecer, espero que se tenham atenuado as razões para a considerar uma geração mais do que sacrificada, perdida.

Se, como diz D. Violeta em Recordações da Casa Amarela, dando voz à hipocrisia lusitana numa «comédia lusitana», «...Somos todos inocentes, meus senhores...», então é porque a culpa é do cinema.

 

O direito de incomodar

Era Fritz Lang quem dizia que «toda a arte deve criticar alguma coisa». Penso que essa pode ser considerada como uma das divisas sob as quais tem decorrido a obra de João César Monteiro, pelo menos nos seus melhores filmes, entre os quais se conta  Recordações da Casa Amarela.

O filme não se limita a ser uma obra limpinha e bem feita aviada num qualquer ready-made do cinema português. Nem o seu autor é homem para isso, nem, se formos a ver, esse estilo de cinema é característico dos cineastas portugueses actuais. Muito pelo contrário, é uma obra esgalhada com vigor, coração e muito amor pelo cinema, sobre o qual César Monteiro tem (e a isso era obrigado) ideias muito suas, gostos muito pessoais e  que, sendo perfeitamente defensáveis, sabe defender muito bem. Quando se trata de dar formas fílmica a esse gosto normalmente atinge uma qualidade que só o amor pode proporcionar.

A «comédia lusitana» que encena neste filme é bem portuguesa sem deixar de ter traços universais, dorida e ressentida, embora haja quem para ela queira permanecer de olhos fechados, et pour cause... Um dos méritos do filme é o de, chamando as coisas pelo nome, mostrar o que incomoda de uma maneira que, sendo limpamente cinematográfica, incomoda mesmo. Vejam-se os planos de muito longa duração em   que o décor tem uma função de mera localização espacial da acção e funciona eficazmente, mas em que o que conta em primeira linha são os gestos, os actos, as palavras principalmente de João de Deus, o protagonista interpretado pelo próprio    realizador, e as situações em que ocorrem, designadamente na sua relação com os outros e/ou com os objectos. Há como que uma encenação impossível  de um impossivelmente lusitano em que somos levados a acompanhar permanentemente um personagem impossível, que vive situações incríveis mas plenas de significado. O filme ressente-se inevitavelmente disso, e ainda bem, fugindo como o diabo da cruz da algaraviada  audiovisual com que somos diariamente agredidos pela televisão em produções ainda por cima normalmente importadas.

Mas é precisamente essa fusão do inaudito com o plausível num filme em que a qualidade se afirma também por uma fundamental justeza do tom adoptado que permite a Recordações da Casa Amarela singrar num mar encapelado de citações originadas no muito saber de cinema e de que o espectador comum nem sempre se dará conta. Aliás, seria esforço  vão estar a procurar detectar todas as influências que  se manifestam neste filme (eu diria que uma narrativa à Stroheim de Greed com uma estética misto do Dreyer de Gertrud e do Oliveira de O Passado e o Presente), de tal modo nele estão  absorvidas e transformadas para dar origem a uma obra pessoal, original e diferente, com uma enorme capacidade de recriar a «comédia lusitana» situando-a em Lisboa. Entre o pícaro e o diáfano, entre o cruel e o grotesco, o filme afirma a individualidade do seu autor, que faz assentar o seu trabalho filmico basicamente em planos fixos, de   longa duração por vezes, em que ressalta o cuidado posto na composição de cada plano, da iluminação ao uso da cor, passando pela escolha do ângulo de filmagem, pela disposição das personagens no décor e por uma soberba utilização do «espaço off », em termos visuais e sonoros.

 

Uma descida aos abismos

João de Deus descreve ao longo do filme um percurso que acabará por o conduzir ao inferno, a que não será de todo em todo alheia a obra de Céline, e não só o de Mort a crédit, na tradução de Luisa Neto Jorge, que, com Guerra Junqueiro, expressamente o autor refere. Assistimos ao que lhe acontece entre admirados, divertidos, angustiados e revoltados, pois sentimo-nos levados pelos acontecimentos mórbidos que progressivamente vão transmutando o seu mau viver em degradação. Podem chamar abjeccionista ao trabalho do realizador, se quiserem, não esqueçam porém que é também lucidez.

Creio que é na primeira metade do filme, em que assistimos ao quotidiano do protagonista marcado por pequenas e lusitanas prepotências e franquezas, por grandes sentimentos, pequenos gestos, desgraças anunciadas, que residem alguns dos melhores momentos de cinema que o filme tem, mostrando-nos o carácter das relações do protagonista com os outros, as mulheres, a mãe, os homens, os animais, tudo suspenso de gostos esboçados, de olhares receosos, de sentimentos recalcados e desviados, de intenções que se ficam por metade, pervertidos os caminhos que acabam por conduzir à desgraça lusitana. Aí, a grande sobriedade da câmara joga de forma perfeita com o carácter alegórico, hiper- realista porque surrealizante da representação, num jogo codificado que descreve um quotidiano quase anedóticamente povoado.

Existem, contudo, pelo menos dois momentos visualmente sinalizados pela iluminação de um modo parateatral que chama a atenção para transições que se verificam no filme com repercussões no personagem de João de Deus.

No primeiro, durante a refeição com Mimi, acompanhando a aproximação da câmara para o último grande plano dela e a sua derradeira linha de diálogo nessa cena, ligando passado e futuro com a ideia de dedos que se enterram na terra. Há então um momento que, no seu artificialismo mesmo, estabelece o contraponto para João de Deus em Mimi. A partir daí há uma certa substituição do hiper- realismo por um artificialismo na  representação. Depois da morte dela assistiremos ao proveito que João de Deus acaba por retirar da situação e do que dela ouvira. Aí se irá cumprir um primeiro passo na desagregação e degradação do protagonista, até aí um exemplar típico e pícaro da comédia lusitana situada em Lisboa.

No segundo momento, quando De Deus fardado entra no quartel, há um obscurecimento na profundidade do portão de entrada. Sinaliza o obscurecimento da mente do personagem, dir-se-ia, a sua passagem para o lado da loucura. Tenho para mim que significa mais o assumir do destino de miséria do protagonista, patenteando o que em si convivia com o pícaro e o risonho, com o mesquinho e o matreiro. A partir daí ele vai   encontrar no manicómio o seu «alter ego», Lívio (Luís Miguel Cintra), que ao despedir-se dele lhe diz «vai e dá-lhes trabalho», no estabelecimento de um efeito de cumplicidade entre as personalidades extrafílmicas de ambos. Esse trabalho que um como o outro, um como realizador de cinema, o outro como encenador de teatro, podem dar é o de desassossego.

Mas a partir do momento em que João de Deus é apanhado por D. Violeta (Manuela de Freitas, assombrosa) no quarto da filha em postura comprometedora e é, consequentemente, obrigado a fugir na noite dos diálogos gritados das vizinhas, entre os dois momentos de sinalização visual atrás referidos, o protagonista entra numa outra  dimensão, caminha para onde o empurraram, para onde se deixou empurrar, para onde, afinal, sempre esteve, isto é, para o lado conturbado da loucura, a partir de então convocado para primeiro plano. E o percurso que a partir daí cumpre obedece já a um outro duplo nível de articulação real- simbólico.

 

O outro lado do espelho

Esse final do filme, de acesso eventualmente menos fácil para o público, é- lhe, no entanto, essencial. O protagonista parecera normal antes (a sua voracidade pelo dinheiro fora partilhada por D. Violeta - e o dinheiro na «comédia lusitana» anda, por regra, associado ao sexo e ao Poder, o que nos remete para a universalidade dessa comédia via, por exemplo, os trabalhos de Godard ao longo desta década, sobretudo), mas a     partir do momento em que veste a farda que lhe não pertence veste o hábito que inevitavelmente o há- de conduzir à reclusão hospitalar. E nesse lado outro, que como sonho nos é mostrado, João de Deus encontra o que reencontra e por isso acaba, simbolicamente, por sair, para reaparecer na forma nosferática que as obsessões cinematográficas impõem.

De passo em espaço, na corrida em volta audível para além de visível, o protagonista regressa ao ponto de partida do lado do nada. Está dentro da lógica outra de um mundo enclausurado. Por isso, também ressurge na forma vampírica — parafraseando Luísa Neto Jorge, «Um dia acorda-se e o abismo é berço / e o diabo mais que um irmão.»"

Pressente-se que João César Monteiro trabalha este filme, em que o ruído tem uma função capital pelo seu excesso e pelo modo como surge, abafando as vozes que, elas também, como um ruído mais se apresentam, como quem está a polir o mais precioso dos metais: a vida humana. Ele quer-nos mostrar, meter pelos olhos dentro, o que nos negamos a ver, a reconhecer, a admitir, o outro lado do automóvel, dos electrodomésticos, da televisão e do vídeo pronto - a- comer, sangra-o como quem escarafuncha uma chaga purulenta e fá-lo como quem nos dá conta da vida com toda a memória do cinema que sabe de cor.

Recordações da Casa Amarela é um  filme que urge ver e rever pelo que nos oferece de um cinema que, rebelde e obstinadamente, se afirma como objecto descodificador do sonho e da realidade, trabalho sobre a memória e contra o esquecimento e o «faz de conta». Na sua singular afirmação de uma degenerescência, o último filme de César Monteiro não pretende sequer ser uma denúncia social - pelo que conheço do autor ele não é um moralista -, antes aspira ao que está em volta das imagens, entre as imagens, ao que está por trás das palavras, por dentro dos actos, ao que conhecendo fingimos ignorar, mesmo quando nos acotovela na rua ou nos calha em sorte.

Descrevendo um percurso regressivo para um tempo antes que não antecipa um tempo outro, dito do lugar inacessível do criador que se afirma lúcido mesmo (e especialmente) quando terrível, objecto redondo feito com seres rombos que aparentam representar num teatro de fantoches, espalhando em volta a desgraça e semeando a  morte, mesmo se involuntariamente, Recordações da Casa Amarela é uma muito conseguida parábola sobre a universal natureza humana, versão lusitana. Não o pretendam desactualizado. Pelo menos sem perceberem que, ao fazerem-no, estão a defender-se daquilo que ele ilustra.

Quanto ao seu autor, como aos seus companheiros de jornada, deixem-nos trabalhar que eles dispõem de capacidade e de projectos para mostrarem o que valem, com a Inês (Medeiros), o melro, o Vasco ( Pimentel ) e tudo o que os acompanha. Eles sabem muito bem o que fazem sem merecerem a sorte que lusitanas desditas, lusitanas inépcias convencidas lhes têm destinado.

 

Carlos Melo Ferreira

Publicado no jornal Diário de Noticias, a 29 de Outubro de 1989