com João César Monteiro, Cláudia Teixeira, Manuela de Freitas
A Comédia de Deus é um filme «florentino». Não só porque nele se vislumbram as qualidades raras de um artesanato infinitamente experiente e sagaz, que se mantêm ainda como a única forma de descoberta (a indústria não descobre nada, limita-se a produzir e a reproduzir); não só pelas criaturas que o habitam — condottieres e suas damas, arrebatados por amores dilacerantes, onde a pura abjecção serve para sublimar uma refinadíssima sensibilidade platónica —, mas também porque A Comédia de Deus possui a coerência de uma visão do mundo que não se esgota na vertigem episódica das vidas de João de Deus, a personagem criada por César Monteiro no anterior Recordações da Casa Amarela e que ressurge aqui (renasce) como hábil e misterioso misturador de aromas na gelataria O Paraíso das Avenidas Novas. Como outrora na pintura florentina
(como no sorriso da Gioconda que é, talvez, o signo que maximamente a define), A Comédia de Deus (alente-se na evidente ambiguidade do título) é um filme onde a anedota é sempre o desdobramento figurativo, e não metafórico, de uma cena muito mais complexa e terrível. Desde Silvestre (1981) que o cinema de João César Monteiro nos andava a prometer isto. E o isto, que era então uma promessa (ainda enclausurada, por exemplo, no pequeno teorema figurativo do final de À Flor do Mar), chegou por fim, e é formidável, claro, porque tem o tamanho exacto das suas ambições.
Face a A Comédia de Deus — à justeza e frontalidade do seu radicalismo —, não será difícil imaginar o silêncio embaraçado de todos quantos têm defendido (de forma mais ou menos pública, aliás) milagrosas soluções para a conformação do cinema português e que quase sempre acabam por invocar, afinal, modelos decalcados de um triste folclore nacional - cançonetista (um bom «ritmo», uma boa «rima», feita de palavras que «todos percebam»). Sem querer transformar este filme naquilo que ele não é e que tão obviamente recusa, um objecto corporativo, «espelho» das virtudes do cinema português, e, no entanto, inegável que A Comédia de Deus — até por via do seu sucesso internacional — mostra claramente quais as «paradas» em que o cinema se mexe hoje, mundo fora, e que pouco se compadecem de uma estética «pimba», feita à medida do umbigo português (que, já agora, tem fama de pequeno e ingrato). Rodeado pelas suas Rosarinhos e Joaninhas, obcecado pela higiene da gelataria, o fausto solitário e libertino de João de Deus é um momento importante de resistência do cinema moderno em face de uma morte anunciada pela banalidade da televisão e de todos os produtos em forma de filme que a procuram converter em modelo. Mais do que um filme moral, A Comédia de Deus é um objecto de fé. E por isso o título, que não podia assentar-lhe melhor.
João Mário Grilo
Publicado na revista Visão a 25 Janeiro 1996