Camões, Sade, Bataille... e Monteiro

 

 A Adjecção à procura da ordem

 

            O REALIZADOR João César Monteiro escolheu o mais perverso soneto de Camões para pontuar literariamente o seu mais recente filme, "A Comédia de Deus". Soneto que começa assim: "Um mover de olhos, brando e piedoso, / Sem ver de quê; um riso brando e honesto (...)" Há uma desordem na obra do cineasta César Monteiro que busca ordem. O espectador e o leitor atentos lembrar-se-ão que o mesmo poema camoniano já fora utilizado na fita "Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço" (ver César Monteiro, "Morituri Te Salutant, Os Que Vão Morrer Saúdam-te", de um outro Monteiro, o Monteiro escritor, heterónimo?; antologia editada pela & etc).

Não espanta que João César recorra ao clássico dos clássicos portugueses. Ele, como outros abjeccionistas — Luiz Pacheco, por exemplo —, anda à procura de uma ordem. Nós, pobres mortais, nunca sabemos de qual. Mas ele procura-a: "Um encolhido ousar; uma brandura; / Um medo sem ter culpa; um ar sereno; / Um longo e obediente sofrimento (...)" ("Obras Completas de Luís de Camões", ed. Livraria Sá da Costa).

Todavia, contudo, quando uma das personagens femininas fecha o soneto — "Esta foi a celeste formosura / Da minha Circe, e o mágico veneno / Que pôde transformar meu pensamento"; e repete "o mágico veneno" —, a gente convence-se de que o cineasta quer ir mais longe do que aquilo que parece. Dai, a escolha do poema. João César Monteiro, realizador, sob a capa de Max Monteiro, actor, vai citando também clássicos que o não parecem. Não apenas nos diálogos — rápidos como é raro no cinema português; o calão e os provérbios são utilizados a propósito e abundantemente, provocando um insólito absurdo —, mas igualmente nos movimentes da câmara. Seja como for, o que agora nos interessa é a ligação de "A Comédia de Deus" à literatura.

Os sonetos de Camões serão a ordem. Assim seja. Ocorre, depois, a desordem: quando a jovem actriz, essa que levou o filme a cabo com João César Monteiro (Max Monteiro?) como quem carrega uma cruz, se senta numa cornucópia de ovos, resta-nos recordar, claro, "História do Olho", de Georges Bataille (ed. port. Livros do Brasil).

Desordem que é mais simples do que a simplicidade adolescente que invocamos quando para isso temos coragem. Invocamos, ainda assim. Mais tarde, invocaremos Casanova, na alegria e despacho dos diálogos do italiano; Sade, no desinteresse pelo sofrimento dos outros, quando os outros são coniventes com a dor; a "Bíblia", porque um deus desaustinado e vingativo nos responsabiliza pelos pecados cometidos. O deus de João César Monteiro — ele considera-se cristão (ver "Morituri Te Salutant") — é tão maluco como o dos judeus, e o cineasta parece não saber. Deveria saber, no entanto.

César Monteiro jura, em "Morituri Te Salutant", que não é surrealista. E não é. Mas é. Porquê? Porque ousa ir mais longe do que Buñuel. Os fantasmas estão lá, e ele lá está para os aparar. Há um pequeno texto de Bataille que avisa: "(...) como se o sacrilégio devesse transformar, finalmente, todas as coisas em algo de horrível e infame," Quem for ver "A Comédia de Deus" saberá que apenas basta um passo para se tornar... O quê? Republicano, como escrevia Sade? Não. Mais um passo para "admitir o casamento do céu e do inferno", citava Bataille. Matrimónio que o leitor aceitará, com a bonomia que lhe é característica. O resto resolve-se com a "Loilita", de Nabokov (ed. port. Teorema), ou a "Zazie", de Queneau (ed port. esgotada). Enfim, talvez os católicos tenham o supremo gozo: só eles sentem o pecado.

"A Comédia de Deus", de João César Monteiro, balança entre o olhar frio do verdadeiro libertino e o desespero do preso que apodrece na cadeia: "Mas as palavras dizem dificilmente o que tem por fim negar" ("O Abade C.", de Bataille, ed. port. Contexto). O resto é o nojo de Céline, o da "Viagem ao Fim da Noite" (ed. port. esgotada). Nada mais se pode dizer, pois o que deveria dizer-se está dito no filme. Basta.

 

                                                                                                        Torcato Sepúlveda

                                                  Publicado no jornal Público a 19 de Janeiro de 1996