1 e 1a Legenda em letra negra sobre fundo branco:
Zum Raum wird hier die Zeit (No espaço se torna aqui o tempo)
-RICHARD WAGNER.
2,3 e 4. Actualidades: Desfile de tropas nazis em parada. Estes três planos são mudos.
5. Imagem em negro. Começa a ouvir-se a “Maurerische Trauermusik”, K. 477 de Mozart, na interpretação de Bruno Walter (CBS).
6. Dia. Fachada de um palacete em ruínas. Continua a ouvir-se música até ao final do plano.
7. Actualidades: Tanques nazis avançando numa estepe. Este plano é mudo.
8. Dia. Sala com janela vidrada a toda a largura. Som directo. Um colchão, junto à janela. Percorrendo o espaço todo do colchão, João anda de gatas de um lado para o outro, acompanhado em pequenas panorâmicas cuja única função é a de rectificar o enquadramento. O movimento dominante é o de um animal enjaulado: um revolto voltar-se, em crispação e dor, contra os objectos que o rodeiam; o fechar-se, finalmente, na intimidade do seu próprio desconforto. (*)
(*) Plano parcialmente cortado, na montagem final.
9. Dia. O mesmo décor. Som directo. João e a filha (Catarina) brincam, sentados em cima do colchão. É, este plano, um dos raros momentos em que o erotismo infantil é abordado pelo cinema. Nada porém que, em matéria de perversidade, o aparente com alguns instantes sublimes que cintilam no meio dos dejectos de Aniki-Bobó. O diálogo que se segue foi inteiramente improvisado pelos actores. Assim, uma ou outra leve correcção, em obediência às necessidades da linguagem escrita, pareceu-nos desejável.
JOÃO : E agora?
CATARINA : Ah! está aqui.
JOÃO: Aonde?
CATARINA: Eu já vi!
JOÃO : Estás a mentir.
CATARINA: Abra a boca. Está aqui por baixo da língua.
JOÃO: Aonde?
CATARINA: Por baixo. Deixe ver. Já chegámos à Rússia?
JOÃO : Por isso é que me estão a nascer cinco tostões dentro da boca. Vamos a ver se apanhas dentro da boca os cinco tostões.
CATARINA: Nahn! Dentro da boca é que eu não apanho.
JOÃO: Porquê?
CATARINA: O meu avô já engoliu uma. Depois um preto foi com uma mão e tirou-lha.
JOÃO: Um preto foi com mão que tirou os cinco tostões?
CATARINA: Sim!
JOÃO: Dentro da boca?
CATARINA: Sim!
JOÃO: Ou dentro da barriga?
CATARINA: Sim!
JOÃO: Foi mesmo ao fundo da barriga tirar os cinco tostões?
CATARINA: Sim!
JOÃO: E o preto desceu por uma escada ou desceu só pela mão?
CATARINA: Foi com a mão.
JOÃO : Foi com a mão?
CATARINA: Foi.
JOÃO : Meteu a mão, onde? E isso fez comichão dentro da barriga?
CATARINA: Não sei. Isso não sei.
JOÃO : Não fez comichão a tirar os cinco tostões dentro da barriga?
CATARINA: Não.
JOÃO : Então, ele começou a engolir os cinco tostões sem perceber nada para lhe tirarem os cinco tostões.
CATARINA: Ai não, não. Aquilo deve ser um trabalhão.
JOÃO : É um trabalhão? meter a mão dentro da barriga? É? Já experimentaste?
CATARINA: Ainda não.
JOÃO : Queres experimentar?
CATARINA : Ai, não! Vou fazer o meu pino.
JOÃO: Vais fazer o pino?
CATARINA: Sai daí.
JOÃO : Então faz. Estás a gostar de ver o mundo ao contrário? (Catarina ri.) E se a gente andasse sempre de cabeça no chão?
CATARINA: Vamos andar?
JOÃO: Vamos.
CATARINA: Vá, então…
JOÃO: Assim toda a gente andava sem chapéu, não é? ou o chapéu tinha que passar a chamar-se sapato. Já viste que se os chapéus fossem sapatos tinham que levar solas novas.
CATARINA: Tenho uma peúga na cabeça.
JOÃO: Tens uma peúga na cabeça? É para não ficares com os cabelos frios. Se arrefeces os cabelos apanhas uma constipação. Tens de cortar as pestanas e arranhas as meias, não é?
CATARINA: Faça o pino. (João faz o pino.) E ficou aqui com uma moeda. Vou dar a cambalhota com… com… Oh! Caiu. Agora assim, agora a fazer o pino.
JOÃO : Ai Catarina…
CATARINA: Já chegámos à Lúcia.
JOÃO: À Lua?
CATARINA: À Lúcia.
JOÃO: À Lúcia?
CATARINA: Já chegámos…
JOÃO : À Prússia. À Trussia.
CATARINA: Já chegámos à Luécia.
JOÃO: À Luécia?
CATARINA: Sim!
JOÃO : À Trucéssia?
CATARINA: Não!
JOÃO: Etécia?
CATARINA: Não!
JOÃO: Então? À Plécia?
CATARINA: À Espanha.
JOÃO: À Espanha?
CATARINA: É.
JOÃO : Da apanha?
CATARINA: Não!
JOÃO : Arranha? Na panha?
CATARINA : Não. À Espanha.
JOÃO : O que é a Espanha?
CATARINA: É uma terra.
JOÃO :Uma terra?
CATARINA: É uma cidade.
JOÃO : Nunca ouvi falar. Que tamanho é que tem?
CATARINA: Nós estamos em Espanha!
JOÃO: Que tamanho é que tem a Espanha?
CATARINA: Não sei.
JOÃO: É grande assim? (Aproxima as mãos uma da outra.) Ou pequenina assim?
(Afasta as mãos.)
CATARINA: É grande.
JOÃO : É alta assim ou pequenina? (Mesmo jogo de mãos, mas na vertical.)
CATARINA: É grande.
JOÃO: É grande?
CATARINA: É.
JOÃO: Tem cabelos?
CATARINA: Tem calos nos pés.
JOÃO : E botas?
CATARINA: Tem calos, muitos calos muitos, muitas ruas…
JOÃO : Muitos.
CATARINA: …e muitos jardins.
JOÃO : E muito feios. É feia?
CATARINA: Não. É muito bonita.
JOÃO : É linda. É amarela ou encarnada?
CATARINA: Ai não sei.
JOÃO : Não sabes?
CATARINA: Não.
JOÃO : Nunca a viste?
CATARINA: Não. Nunca fui lá.
JOÃO : Então e se fosses lá como é que a vias?
CATARINA: Ah! via com os meus olhos.
JOÃO : Podias mandar os teus olhos dentro dum envelope, não é?
CATARINA: Como é que eu tirava os olhos?
JOÃO: Desatarraxavas e pegavas numa chave de parafusos. Tiravas os olhos e mandavas dentro dum envelope.
CATARINA: Não. Vou fazer o pino.
JOÃO: Se fizeres o pino vês a Espanha.
CATARINA: Está bem.
JOÃO: Então? Está ao contrário? Estás a ver a Espanha?
CATARINA : Estou. Olhe, é vermelha.
JOÃO: Muito vermelha, muito vermelha?
CATARINA: Tudo vermelho.
JOÃO: Tudo vermelho.
CATARINA : Os calos dos pés são vermelhos.
JOÃO : Ah! mas a cabeça se calhar é branca.
CATARINA: A cabeça… deixa-me ver outra vez… (Faz o pino.) …a cabeça é azul.
JOÃO : Ah! bem me parecia. E os olhos? E os olhos?
CATARINA : Os olhos, deixe-me ver… (Faz o pino.) …os olhos são amarelos.
JOÃO: Sabes porque é que são amarelos?
CATARINA: Não.
JOÃO : Têm mau feitio.
CATARINA: Então, deixe-me ver outra cor… a cor do vestido. A cor do vestido… (Falha o pino.) …ai não vi. (Faz nova tentativa.) A cor do vestido é branca.
JOÃO : Está sujo ou está porco?
CATARINA: Está branquinho.
JOÃO: Está branquinho. Foi lavado…
CATARINA: Foi.
JOÃO : … com detergente.
CATARINA: Ajax.
JOÃO : Ajax lava mais branco. Lava?
CATARINA : Não. Skip.
JOÃO : Com Skip?
CATARINA: Na máquina de lavar.
JOÃO : Roupa. Automática!
CATARINA: Sim!
JOÃO: Americana?
CATARINA: Não!
JOÃO: Alemã?
CATARINA: Não!
JOÃO: Chinesa?
CATARINA: Não!
JOÃO: Japonesa?
CATARINA: Não!
JOÃO: Espanhola?
CATARINA: Não!
JOÃO: Portuguesa?
CATARINA: Sim!
JOÃO: Venezuelana? Espanhola?
CATARINA: Portuguesa!
JOÃO: Portuguesa? Mandaram para lá uma máquina de lavar roupa para lavar o vestido à Espanha? E a Espanha gostou ou não gostou nada?
CATARINA: Gostou muito.
JOÃO: Achou que estava bonita ou feia?
CATARINA: Muito bonita.
JOÃO: Ah! Sim? E não fez cócó no vestido?
CATARINA: Não!
JOÃO: Nunca faz cócó no vestido?
CATARINA: Não!
JOÃO: Nunca fez cócó no vestido na sua vida? Então, porque é que a Espanha existe se nunca fez cócó no vestido?
CATARINA: Porque existe.
JOÃO: E é triste ou alegre?
CATARINA: É alegre, muito alegre, muito triste.
JOÃO: Pois é. É triste e muito alegre, muito alegre, não é?
CATARINA: É. Umas são alegres, outras são tristes.
JOÃO: As Espanhas. As Espanhas. A Espanha tem irmãs ou tem sobrinhas?
CATARINA: Ah! deixe-me ver. Vou ver. (Faz o pino).
JOÃO : Ao contrário é que se vê tudo, não é?
CATARINA: É. Vi! Tem dezanove sobrinhas.
JOÃO: Quantas irmãs?
CATARINA: Quantas irmãs não vi. Estavam dentro de casa a fazer um bolo.
JOÃO: Um bolo para quem?
CATARINA: Para o tio.
JOÃO: O tio é gordo?
CATARINA: É.
JOÃO: Muito gordo?
CATARINA: Sim!
JOÃO : Do tamanho de quê?
CATARINA: Do tamanho duma… (aponta para fora de campo)… daquilo!
JOÃO : Daquela bola que tem bigodes.
CATARINA: Sim, sim!
JOÃO : Bigodes muito grandes.
CATARINA: Pois.
JOÃO : Está vestido com quê?
CATARINA : Com uma coisa que mete medo.
JOÃO : Com uma cara muito feia.
CATARINA: Sim, pois. (Toca com um pé no peito de João). Aqui… aqui… aqui uma espada…
JOÃO: Tem uma espada…
CATARINA: … pintada…
JOÃO : … pintada…
CATARINA: Sim!
JOÃO : De que cor?
CATARINA: Branca!
JOÃO : Uma espada branca? mas está suja ou está limpa?
CATARINA: Está limpinha.
JOÃO : Então, foi lavada também com Ajax.
CATARINA: Não!
JOÃO : Com Skip.
CATARINA: Não, não porque aquilo não se pode lavar…
JOÃO : … meter na máquina.
CATARINA : Pois, não se pode. Só se partir.
JOÃO : Escangalha a máquina. E a Espanha vive sozinha ou vive já acompanhada de alguém?
CATARINA: Vive acompanhada do português.
JOÃO: Do português?
CATARINA: Sim!
JOÃO: Ai a Espanha é casada com o português?
CATARINA: Sim!
JOÃO: Hum! E então…
CATARINA: … tem filhos portugueses e filhos espanhóis.
JOÃO: E os filhos são feios ou são..
CATARINA: …são lindos; outros são feios; outros são feias.
JOÃO: Outros são lindos.
CATARINA: De terror!
JOÃO: Façanhudos
CATARINA: Ahn?
JOÃO : Façanhudos!
CATARINA: Oh! Sim!
JOÃO: Com muitos narizes
CATARINA: Com nove narizes.
JOÃO: Em cada olho.
CATARINA: Sim, e nove ôlhos no nariz.
JOÃO: Pois, e têm os dentes nas orelhas.
CATARINA: Têm. As orelhas na boca.
JOÃO: Ah! E os sapatos com dedos.
CATARINA: Os atacadores na barba.
JOÃO: Fora das camisolas.
CATARINA: Pois.
JOÃO: Tudo interlock
CATARINA: É tudo uma trapalhada. Os espanhóis. Os portugueses são mais bonitos.
JOÃO : São mais bonitos. São feitos de nylon?
CATARINA : Não, são feitos de tinta e de papel.
JOÃO: Tinta. Transparente?
CATARINA: Não!
JOÃO : Então vêem-se.
CATARINA: Vêem-se.
JOÃO : Então se se vêem são pretos.
CATARINA : Não, não é transparente.
JOÃO : Então e como é que eles não deixam de se ver?
CATARINA : Nós vimos. Eu vejo.
JOÃO : Mas os outros não vêem, pois não?
CATARINA: Não!
JOÃO : Os outros que vêem de fora nunca nos vêem.
CATARINA : Pois não.
JOÃO : E, depois, o que é que pensam? Pensam que não há ninguém.
CATARINA: Pois pensam. E, depois, vão-se logo embora. E é muito melhor.
JOÃO : É melhor porque assim não nos vêem e ficamos sozinhos, não é?
CATARINA: É
JOÃO: E estar sozinho é bom?
CATARINA: Não…
10. Noite, o mesmo décor A superfície vertical é negra, sendo a horizontal dominada pelo branco do lençol, de molde a provocar uma fractura no espaço. Som directo. João e Maria, m cima do colchão. Parecem tomados por mútuo temor, mais visivelmente exteriorizado em Maria, e compensado pelo gesto protector em João. Acolhem-se na zona de negro, até desaparecerem por completo.
11. Dia. Exterior. Travelling óptico, muito rápido, sobre uma laranja colocada em cima do tampo escuro e semi-circular de uma mesa. Fundo de mar. Coincidindo com o final do movimento óptico ( grande plano), começa a ouvir-se, em off, o seguinte texto:
VOZ (off): Como na esponja, há na laranja uma aspiração para se reter, contendo-se depois de ter passado a prova da expressão. Mas se a esponja consegue sempre, a laranja não consegue nunca, porque as suas células estalaram, porque os seus tecidos se rasgaram. Enquanto a casca é único elemento a revestir-se molemente da sua forma, graças à sua elasticidade, vai-se espalhando um líquido de âmbar acompanhado, é certo, de frescura e de perfumes suaves, mas muitas vezes também da consciência amarga de uma expulsão prematura de caroços. Será preciso tomar partido entre estas duas maneiras de mal suportar a opressão? Toda a esponja é apenas músculo, e se enche de vento, e ora de água limpa e ora de água suja: esta ginástica é ignóbil. A laranja tem um sabor melhor, mas é excessivamente passiva, e esse sacrifício odorante é tratar demasiado bem o opressor. Mas não se disse tudo da laranja se se falou apenas da sua particular maneira de perfumar o ar e de dar prazer ao carrasco. É preciso acentuar a coloração gloriosa do líquido que daí resulta e que melhor que o sumo de limão obriga a laringe a abrir-se largamente, tanto para pronunciar a palavra como para ingerir o líquido, sem qualquer movimento de apreensão da boca anterior, cujas papilas não faz crispar. Para além disto, não há palavras para falar da admiração que merece o invólucro da terna, frágil e rósea bola oval, nesse espesso tampão mata-borrão húmido cuja epiderme, extremamente ténue, mas muito pigmentada, acerbamente sápida, só tem a aspereza exactamente necessária para unir dignamente a luz à forma perfeita do fruto. Agora, no termo deste estudo demasiado breve e demasiado génerico, é preciso regressar ao caroço. Esse grão, com a forma de um minúsculo limão, apresentava, visto de fora, a cor do tronco branco do limoeiro e, visto de dentro, um verde de ervilha ou de rebento tenro. É nele que se reencontram, depois da explosão sensacional da laterna veneziana de sabores, cores e perfumes, que constitui a própria bola- fruto, a dureza relativa e a verdura, aliás nunca inteiramente insípida, do tronco, do ramo, da folha. Não é muito, mas é concerteza a razão de ser do fruto.
12. Dia. Exterior. Som directo. Sentada entre ruínas, de perfil para a câmara, uma velha, da qual se vê apenas a cabeça. Ao fundo, dominando quase toda a superfície do enquadramento, a abertura rectangular do que devia ter sido uma janela dando para uma paisagem de campo suburbano com um monte que se recorta contra o céu.
VELHA: Ai o meu filho!
Travelling óptico, muito lento, em direcção à janela. A velha fica fora de campo.
VELHA (off): Neste país, os velhos morrem como cães.
O movimento óptico já deixou para trás a janela e, agora, é apenas visível a paisagem que aqui se indicou, na convicção de que não se pode indicar tudo. Final do movimento óptico.
13. Dia. Sala, junto à janela. Som directo. Para entreter a filha João provoca um mimodrama de transformação de objectos. Como, no que toca ao propósito deste plano, a palavra seria sempre espúria, decidiu-se distanciar os microfones do espaço (restrito) em que os actores se movem, a fim da captação sonora visar, sobretudo, os ruídos de ambiente. Atribua-se ao puro acaso a ligação do sopro de João, fingindo que enche um balão, com a passagem de um jacto, bem assim como a subida do tom da voz de Catarina, no instante preciso em que o avião sobrevoa a casa, o que se deve à necessidade de se tornar audível para o microfone, ou seja: o condutor da voz para o espectador.
14. Dia. Um canto da sala. Som directo. Ao fundo, paralelo à câmara, um sofá onde estão sentados os pais de Maria. Ao centro, uma mesa rectangular com uma bandeja onde foi servido chá. Do lado esquerdo, sentada numa cadeira, junto aos pais, está Maria. Do mesmo lado, acocorado num banco, mais próximo da câmara, está João, com a cara tapada por uma máscara de porco made in Walt Disney. Do lado direito, por uma questão de equilíbrio do enquadramento, um candeeiro que pende do tecto, envolvido por um enorme globo de papel de condigno abat- jour. Catarina, aparelhada com uma máquina de filmar de 8 m/m, entra e filma, filma e sai, sendo o único objecto que, durante a maior parte plano, se desloca. O ruído provocado pela máquina de filmar torna-se particularmente desagradável porque se imiscui impertinentemente na conversa, obrigando o espectador a um maior desgaste da atenção. Apesar disso, este plano será tomado satisfatoriamente por um público que só lamentará que o resto do filme não o continue. Longe dos meus propósitos, no entanto, o tê-lo filmado por transigência com os gostos destes filhos da puta. De resto, quanto mais não seja pelo prazer que tive em trabalhar com a actriz admirável chamada Dalila Rocha, valeu a pena. A inserção deste plano no conjunto do filme, obedece a uma brusca variação de registo, e é nesse sentido (duvidoso e precário) que deve ser entendido.
MÃE DE MARIA: Pois nós já estávamos para vir cá pelo Natal, mas o pai não se sentiu muito bem, sabes, aquelas coisas que ele tem às vezes, não sei se reumático.
PAI DE MARIA: Nós não estávamos nada para vir pelo Natal. Foi a tua insistência de vir ver a nossa filha, porque a minha vontade, bem sabes, era nunca cá pôr os pés.
Grunhido de João.
MÃE: Não acredites nisso. Estávamos ansiosos, ó José, estávamos ansiosos por ver a menina, a Catarininha. Há tanto tempo que a gente não a via. Vimo-la em muito pequenina e depois só nos mandaram aquela fotografia dela muito pequenina. Estávamos sempre à espera de receber…
PAI: Só nos mandaram, também é uma forma de dizer. Mandou a Maria, porque eu não acredito que aquele sujeito se recorde de nós para nos mandar absolutamente nada. Nem sequer se interessa com a nossa existência e o melhor é, efectivamente, também nós não nos interessarmos com a dele.
MÃE : Não, não é isso, José. (Para a miúda que filma) Que andas a fazer?
MARIA: O pai agora tem passado melhor?
PAI: Eu tenho passado menos mal. Hoje é que me sinto bastante mal disposto. (Tosse).
MÃE: Como sabes, foi também a viagem, foi a viagem.
PAI: Foi o cansaço da viagem, especialmente… ou pensar no final da viagem,
naquilo a que ela se destinava, ao fim e ao cabo a querer fazer a… como é que eu hei- de dizer? a querer fazer a vontade da tua mãe, mas a saber que isto não dá prazer nenhum a ninguém, nem traz vantagem para ninguém
MARIA: Oh! pai!
MÃE : Deixa-o falar, Maria. Não digas isso José. Estavas ansioso por vir, como eu. Ele agora… sabes, o cansaço, o enervamento, e também estava… estava ele e eu um bocadinho tristes e aflitos com ….
MARIA: Eu não tenho escrito. É que eu tenho muito que fazer, mas eu agora vou passar a escrever.
PAI (para Maria): Tens muito que fazer? Em que trabalhas? Em que trabalhas tu?
MARIA: Na fábrica. Continuo a trabalhar…
PAI: Na fábrica. És tu que sustentas a casa com certeza, não é?
MÃE : José!
PAI: José, como? Alguém sustenta uma casa empoleirado assim no canapé com…
MARIA: Aquilo é uma brincadeira, pai.
PAI: …com… com uma máscara de porco? Para quê?
MARIA: É uma brincadeira com a Catarina
MÃE: É para entreter a menina, não é? Cá em Lisboa não há quintais, as criancinhas não tem onde brincar, ó Catarina, o que andas a fazer? Anda cá dar um beijinho aos avós. anda.
CATARINA: Não!
MÃE: Anda dar um beijinho à avozinha!
MARIA: Venha Catarina, venha dar um beijo à avó!
CATARINA: Não! (João grunhe).
MÃE: Estás tão bonita! É tão parecida com a Maria, não é?
PAI: Não queres dar um beijo ao vovô, também? (A miúda faz que não com a cabeça. João grunhe).
MÃE : Anda, tens os olhos tão bonitos!
PAI: Vá lá, anda cá. Anda dar um beijo ao avô.
CATARINA : Não!
PAI : Não, porquê? Foi aquele porco que te disse para não dares beijos? Foi?
MÃE: Não, é que ela agora anda entretida, anda entretida a brincar, não é?
PAI (para a miúda): Ouve: sabias que nos vínhamos cá, sabias?
MARIA: Sabia.
PAI: Sabias que vínhamos cá? E o teu pai, aquele senhor que ali está empoleirado em cima, o que é que ele disse a propósito de nós virmos cá? Disse-te alguma coisa, filha? Ou não te disse nada?
MÃE: Ó José! Já andas na escola, já? Tu já sabes escrever, já? Já? Quando é que escreves uma cartinha aos avós, quando?
Catarina aproxima-se da mesa, pega numa caneta e começa a escrever numa folha de papel.
PAI: Ah! pelo menos a letra é bonita.
MÃE : Escreve muito bem.
PAI: Ora deixa, deixa eu segurar no papel para te auxiliar. E escreves depressa. Gostas de escrever, gostas Catarina? Coisas bonitas? Ensinam-te coisas bonitas para tu escreveres? Deixa lá ver esta.
MÃE : Ai que bonita letra!
PAI: Olha, esta é lindíssima, olha: a escola… a escola é a retrete cultural do opressor. (Grunhidos de João). Ensinado com certeza por aquele monstro. (Aponta na direcção de João Perry a fazer papel de pagador de favas).
MÃE: Não, não é. São coisas que as crianças ouvem.
PAI: Mas de certeza absoluta! A escola é o retrato cultural do opressor. Ouve lá, filha, tu sabes o que é um opressor, tu sabes?
CATARINA: Não.
PAI: Tu sabes o que é cultural? Portanto, quem é que te ditou esta frase, quem disse para tu escreveres isto? Foi o papá?
MÃE: Não. Ela viu, não foi?
PAI: Foi, foi. Foi o papá que disse para tu escreveres isto?
(O realizador agradece à Catarina a sua exemplar discreção…)
MÃE : Viu num jornal.
PAI : Viste num jornal? Então, como foi? Diz lá!…
MÃE: Ah! deixa a criança brincar. Vais tirar um retrato aos avozinhos, vais? Ora vá, vá, tira um retrato aos avozinhos e à mãezinha também, sim? E depois mandas, está bem? (João grunhe.) Olha, ela já fez a comunhão?
MARIA: Não, faz para o ano.
MÃE: Faz para o ano…
PAI: Faz para o ano como? Ela é baptizada? (João grunhe). Nunca nos disseste que ela fosse baptizada! (João grunhe de novo). É baptizada?
MARIA: É.
PAI : És capaz de me mostrar por aí a certidão de baptismo? Concerteza na igreja passaram-te a certidão de baptismo.
MARIA : Agora não vou encontrar, concerteza.
PAI: Não vais… sim, realmente, nesta baraunda é impossível encontrar qualquer coisa. (João assobia).
MÃE: Valha-me Deus, José, então…
PAI: Olha, pede ao teu marido para encontrar, farejando como um porco. Vai farejando que talvez encontre.
PAI: José! Ó meu Deus
MARIA: Porque é que não vêm cá mais vezes?
PAI: Daqui, a muitos anos. muitos anos. Mas olha, preferia que fosses tu a ir lá para casa. Quando te convenceres que efectivamente o teu ambiente é outro, que ainda lá tens em casa o teu quarto, que os teus pais te esperam e, naturalmente, a Catarina também. E quando estiveres liberta de pessoas como esta, não é? que não te trazem nada e que…
MÃE: Não. José!
PAI: …nem sequer trabalha! Ele não trabalha em nada, concerteza, pois não?
MARIA: Trabalha.
PAI: Trabalha em quê? Empoleira-se
MÃE: O José, ele está a fazer isto … está a entreter a menina!
MARIA: Está a brincar, pai
PAI: Mas é uma brincadeira que está para ali quieto! Não diz nada à miúda, a criança anda aqui para trás e para a diante e ele não lhe liga sequer. Isto é uma obsessão, é uma tara, concerteza.
MÃE: Não, não digas isso. Sabes, o teu pai lê muito, lê muito, agora anda sempre muito preocupado, lê, lê, não se distrai com televisão nem com nada. Sabes, alguns amigos que ele tinha já morreram, morreu aquele senhor da farmácia…
MARIA: Ai coitado!
MÃE: …o Joaquim. Pois, e aquelas pessoas com quem ele se dava mais. O doutor Medeiros também saiu de lá, de maneira que ele agora passa assim uma vida mais isolada…
MARIA: Mas têm que se distrair, têm que tentar.
MÃE: Pois, de maneira que está sempre preocupado, preocupado, e acima de tudo preocupado convosco.
PAI: És capaz… capaz de me dizer uma coisa, Maria: qual foi a ideia… quem teve a ideia de pôr aquelas fitas de papel cruzado ali coladas na parede?
MARIA: Por causa dos vidros, para não se partirem, porque às vezes a miúda está a brincar e atiram bolas…
PAI: Tu sabes quando é que se põem aquelas coisas? É quando há… quando há receios de revoluções, de guerras, de agitações…
MÃE : Tem havido revoluções?
PAI: Quer dizer: isto é algum símbolo, deve ser algum símbolo concerteza. algum símbolo revolucionário concerteza, porque realmente, numa casa de paz, ninguém se lembra de pôr aquilo.
MÃE: Não. É para a menina, não é? Ela brinca com a bola e assim…
PAI: Brinca com a bola… Pois…
MÃE: Sim, revoluções assim não há por aqui,pois não?
PAI: Não, revoluções por aqui não há, felizmente. Felizmente, por ora. Vivemos com muita disciplina e… haverá no dia em que estes antropopitecus, olha…
MÃE: O quê? O que disseste, José?
PAI: Não sabes o que é um antropopiteco?
MÃE: Não, filho, não, Eu…
PAI: São uns animais, olha, que se põem nestas posições…
MÃE: Meu Deus, eu passo a vida a trabalhar, sabes, lá na loja…
PAI: …e que são seres irracionalizados, sempre com vontade de fazer mal.
MÃE: Não faças caso…
PAI: Obsesssionados.
MARIA: A mãe tem passado bem?
MÃE: Olha, filha: lá vou trabalhando. Sabes, agora não há pessoal, sabes como é, tudo emigrou, tudo emigrou. As raparigas vão para a fábrica ou vêm para a cidade. (João assobia). Os rapazes novos…
PAI: Talvez o teu marido queira ir trabalhar lá para casa. Medir nastro, vender ao balcão, atender as pessoas…
MÃE: E então?
PAI: O que é que me dizes à ideia?
MÃE: Se lá fossem passar uns dias, assim quando tiveres umas feriazinhas, talvez ele até… gostasse. Era uma vida diferente, não era?
PAI: Mas ele trabalha em quê? Olha, repara ó Maria que tu ainda não me disseste concretamente em que ele trabalha e és casada já… talvez o quê? há sete anos foi quando tu saíste de casa e até agora eu ainda não consegui saber aquilo que ele faz! (João grunhe). Grunhe. Grunhe é o que eu vejo, mas além de grunhir o que é que ele faz? Deixa-te quieta mulher. Então não ouves que ele grunhe?
MÃE : José! ele está a brincar com a menina, nós viemos aqui…
PAI: Pois, eu sei que está a brincar, mas além de grunhir e brincar com a menina o que é que ele faz? O que é que ele faz na vida?
MÃE: Olha, tu é que continuas a trabalhar na fábrica, não é ? E dás-te bem ?
MARIA: Muito bem.
MÃE: Mas tu estás um bocadinho magra Trabalhas muito, não é?
MARIA: Sempre fui magra.
PAI: E quanto ganhas? Quanto ganhas?
MARIA: Agora, estou a ganhar mais.
PAI: Estás a ganhar mais.
MARIA: Já fui aumentada.
PAI: Já ganhaste menos, mas não dizes quanto ganhaste. E aquilo que ganhas mais, junto àquilo que ele te ganha, ainda é mais do que o mais do que tu ganhas, não é? Quanto é que ele ganha?
MARIA: Mas chega, pai, perfeitamente.
PAI: Mas ele ganha o quê?
MARIA: Não temos problemas
PAI: O que é que ele ganha?
MÃE: Eles têm uma casa tão bonita!…
PAI: Pois
MÃE: …Tão agradável, com tanta luz!
PAI: Está tudo pago? Está tudo pago. Pagaste tu?
MARIA: Pagámos.
PAI: Pagaram. Pois.
MÃE: Sabes, são jovens, têm uma maneira diferente…
PAI: São jovens, não! É doido, um indivíduo neste género é doido necessariamente. Então como é que se pode admitir que nós estamos aqui…
João dá um salto e aterra sobre a mesa, fazendo com que a bandeja caia ruidosamente. Os pais de Maria levantam-se, assustados.
JOÃO: Fora! Fora daqui, pá! Merda! Gordo de merda! Aldrabões! Então, não há guerra? Fora da minha casa!
Enxota os velhos e Maria para fora de campo. Grande berreiro da mãe, sobretudo. Maria ainda volta a entrar no limar do enquadramento.
MARIA: Nunca mais te perdoo.
João repele-a, grunhindo.
Um reparo: A última frase de João (”fora da minha casa!”) é um erro de actor. Consenti-la no filme é, mais gravemente, um erro de realização.
15. O mesmo décor, junto à janela. Maria e João em cima do colchão, sentados em frente um do outro. Travelling fazendo, lenta e repetidamente, o vai-vém de um percurso em L. Uma ou outra sombra de marcada tristeza não será, todavia, bastante para ofuscar a imensa doçura que, desde a luz aos gestos passando pelo continuado passeio da câmara, envolve, e anima todo o plano. Estará, então, a excepção no larghetto do quarteto para piano, violino, viola e violoncelo, K. 493 de Mozart, respec-
tivamente interpretado por Fou Tsong, Yehudi Menuhin, Walter Gerhardt e Gaspar Cassado (His Master’s Voice), com os seus radiosos fingimentos de alegria?
16. Noite. Interior. Som directo. O fundo espelhado devolve-nos, em plano americano, uma imagem de Maria que vemos, junto ao espelho, em plano médio. Sensivelmente de perfil, fixa um ponto fora de campo, na direcção da direita. Diga-se que era a folha de papel em que o texto se encontrava escrito, muito embora a Manuela o tivesse decorado. Entre outras coisas, gabo-lhe também aquela espécie de paciência a que alguns chamam sentido das responsabilidades profissionais.
MARIA: — Porquê mais abnegação do que ciúme, menos desejo que equanimidade?
— De ultraje (matrimónio) a ultraje (adultério) nada mais se ergueu do que ultraje (copulação), no entanto o violador conjugal da conjugalmente violada não tinha sido ultrajado pelo violador adúltero da adulteramente violada.
— Houve retribuição e, em caso afirmativo, qual?
— Assassínio? Nunca. Dois males não fazem um bem. Duelo? Não. Divórcio? Ainda não. Revelação por testemunho indirecto mecânico (cama-automática) ou directo (testemunha ocular dissimulada)? Não, por ora. Acção por perdas e danos pelas vias legais ou agressão simulada com marcas evidentes de sevícias (auto-infligidas)? Não de todo impossível. Em caso afirmativo, então certamente: cumplicidade, introdução da emulação (material ou moral), depreciação, alienação, humilhação, separação que protege a separadora do separado e, de ambos, o separador.
— Através de que reflexões, o reactor consciente contra o vazio da incerteza, justifica a seus próprios olhos os seus sentimentos?
— Da fragilidade predeterminada do hímen da intangibilidade pressuposta da coisa em si mesma; da incongruência e desproporção entre a auto-prolongante tensão da coisa feita; da debilidade falaciosamente inferida da fêmea da musculosidade do macho; das variações dos códigos éticos, da natural transição gramatical por inversão que não implica qualquer alteração no sentido de uma proposição aoristo -pretérita (analisada como sujeito masculino, verbo transitivo monossilábico onomatopaico com complemento directo feminino) da voz activa para a sua correspondente proposição aoristo-pretérita (analisada como sujeito masculino, verbo auxiliar e particípio passado quase monossilábico onomatopaico com o agente masculino complementar) na voz passiva; do produto continuado de seminadores por geração; da produção contínua de sémen por destilação; da futilidade do triunfo, do protesto ou da vingança; da inanidade da tão exaltada virtude; da letargia néscia da matéria; da apatia das estrelas.
— Reduzidos à sua forma mais simples para que satisfação final convergiram estes sentimentos e reflexões antagónicas?
— Satisfação causada pela ubiquidade nos dois hemisférios terrestres, oriental e ocidental, em todas as ilhas e terras habitáveis, exploradas ou inexploradas (o país do sol da meia-noite, as ilhas dos bem-aventurados, as ilhas da Grécia, a terra prometida), dos adiposos hemisférios posteriores femininos com o aroma do leite e do mel e do calor excretório, sanguíneo e seminal, reminiscentes das famílias seculares de curvas de amplitude, insusceptíveis de modos de impressão ou de contrariedades de expressão, expressivos da muda imutabilidade da animalidade madura.
— Sinais visíveis de ante- satisfação?
— Uma erecção aproximada; uma fascinação atenta; uma elevação gradual; uma revelação errática; uma contemplação silenciosa.
— Depois?
— Beijou os rotundos amareliflões melões melicheirões do seu rabicundo, cada um dos rotundos e melonosos hemisférios, do seu rego amareliflão, com uma obscura prolongada provocante melo-melidorante osculação.
— Sinais visíveis de post- satisfação?
— Uma contemplação silenciosa; uma ocultação errática; uma degradação gradual; uma repulsão atenta; uma erecção próxima.
— O que seguiu esta acção silenciosa?
— Invocação sonolenta, identificação menos sonolenta, excitação incipiente catequética interrogação.
17. Dia. Sala, junto à janela. Som directo. João imita uma árvore. A criança começa por tentar trepar à árvore. No mais frontal e cruel despojamento, a pequena ousadia de virar do avesso as tradicionais representações do real, e a oferta, de bandeja, de uma via real para o cinema do futuro. Se não o melhor, pelo menos o mais importante plano do filme. A noticia aqui fica para que , a sue tempo, não se diga que o realizador dormitava rancorosamente, no meio de imbecis. Só a criança fala, espaçadamente. Está na natureza, assiste às suas metamorfoses e, quando muito, retoca-a a seu bel-prazer. É a criança eloquente?
CATARINA : Vou descer!… Já consegui!… Fazer o pino!… Grande árvore!.. Vou arrancar uma folha!… Muito alta!… Não arranquei!… Já arranquei uma !… Jogar à bola!… Um salto de cabeça!… Um cavalo!… Agora vou subir sem almofadas!… Não sou capaz!… Não baloiça!… Não me encontra!… Só posso olhar pelo ramo!… Consegui!… Ainda não perdi!… Olha, mudou-se de posição!… Não consigo!… Aqui é melhor!… Vou subir!… A ver se sou capaz!… Grande árvore!…
João enfiou-se debaixo do colchão.
Tornou-se um monte!… Custa tanto a subir!… E este monte anda!…
Espreita por baixo do colchão.
Está por baixo uma árvore, com uma raiz tão grande!… Está tudo a balouçar!… Está muito vento!… Um ramo já a nascer!… Vou arrancar uma folha!… Já arranquei!…
Aparece, saindo debaixo do colchão, uma perna de João.
Olha: nasceu outro braço!…
Catarina bate alegremente as palmas.
Já nasceu a árvore!… Já ficou sem uma folha!… Consegui!…
Do exterior, o acorde da buzina de um automóvel liga com a primeira nota de primeira nota de piano do plano seguinte.
18. Noite. Chão da sala. Som directo. Começa a ouvir-se a Fantasia para piano, K 475 de Mozart, na interpretação Vaso Devetzi ( His Master´s Voice). João e Maria, filmados de cima João tem o rosto coberto com uma máscara de papelão que representa a morte. Em torno dele, Maria sacode-o e agride-o. De certo modo, trata-se de uma espécie de dança macabra. Para além da gravação simultânea da música (interessava auscultar em que medida iria contaminar o jogo rítmico dos actores), tentou-se igualmente tirar partido dos ruídos, não só vocais como também do próprio corpo dos actores e dos objectos que transportam, nomeadamente do amolgar da máscara que, por vezes, ao readquirir a forma inicial, estala de molde a provocar um curioso efeito de falso assincronismo.
19. Noite. Exterior. Escadaria. Som directo. Maria, descalça e vestindo uma tunica branca até aos pés, a fazer grego made in Marrcos, desce a escadaria, recitando o seguinte texto :
MARIA: Não mais o oráculo se mostrará através de um véu, qual noiva a desposar, antes penso que etéreo irá lançar-se em plena luz rumo ao sol nascente e, como a onda, envolveu em seus eflúvios uma desgraça ainda maior do que esta. Não mais vos instruirei por meio de enigmas. Hoje, sede testemunhas como descobri e sigo a pista dos antigos crimes. Sei bem que nesta casa mora um coro que nunca dela sai, que entoa em uníssono um cântico que os ouvidos não deleita, que as suas palavras não são belas.
Ruidoso bando que para se excitar sangue humano bebeu, não é fácil expulsá-lo do palácio onde mora; é o bando das Eríneas que odeia a nossa raça. Nesta casa encerradas, cantam um hino que recorda o crime inicial, cospem a sua náusea sobre o leito fraterno, em fúria contra aquele que o conspurcou. Será que me enganei ou consegui, como um archeiro, acertar no alvo? Serei eu uma falsa profetisa a murmurar de porta em porta as suas ninharias? Antes que o afirmes, jura-me que nunca te foram contadas as antigas faltas cometidas nesta casa.
Parada num patamar da escadaria, repete várias vezes a cantilena:
Ah! misérias, misérias da minha cidade inteiramente perdida!
Continua, lentamente, a descer os degraus.
Ah! Desgraça! Desgraça! De novo o trabalho da adivinhação verídica me faz rodar sobre mim mesma. De novo me perturba o anúncio da sua vinda. Vedes estas crianças junto ao palácio sentadas, semelhantes aos fantasmas dos sonhos? Dir-se-iam filhos a quem seus pais mataram. Têm cheias de carne as mãos… Parecem segurar intestinos e entranhas, fardo lamentável que um pai digeriu. Não ficará tal crime sem castigo, assim o declaro. Um leão sem coragem que, estendido no leito, guarda a casa, medita a toda a hora tirar vingança do meu futuro senhor, pois o meu destino é suportar o jugo dos escravos. E o chefe da armada, destruidor de Ilion, não sonha que essa cadela execrável cujos infindáveis discursos tanta alegria mostravam, qual fúria que dissimula seus desígnios, prepara a sua desgraça. Vede bem onde chega a sua audácia: fêmea que mata o macho, que nome dar a tão odioso animal? Serpente de duas cabeças, Sila oculta entre os rochedos, flagelo dos navegantes, mãe furiosa e foragida do inferno, que contra os seus acalenta uma luta implacável, que uivos de gáudio solta, a celerada, como se tivesse vencido já o inimigo. Todos a julgam feliz com o regresso e a salvação do esposo. Se hoje a incrédulos me dirijo, não importa. Tudo o que tem que suceder, sucede, e em breve tu dirás, em breve também tu infeliz testemunha deste acontecimento, que eram mais que verdadeiras as minhas profecias.
20. Noite. Um círculo de luz projectado contra uma parede branca. Uma boneca de trapos pendurada na parede, ainda no interior do círculo. Maria, cortada um pouco acima da cintura, ocupa o centro do círculo. Som directo montado com fita de silêncio, no começo do plano. Maria ergue um punhal, mas quando se prepara para desferir o golpe, entra em campo a sombra do braço de João que lhe segura o pulso. O punhal cai no chão e o som entra com o ruído da queda. Maria sai bruscamente de campo, soltando m grito que se prolonga através do espaço off. A cabeça de João fica colocada no centro do círculo. Baixar gradual da cabeça. O grito de Maria liga-se com o ruído de uma porta a bater violentamente e que, por seu turno, se liga com a primeira nota de música do plano seguinte.
21. Noite. Sala junto à janela, aliás ocultada pelo reposteiro corrido. Em cima do colchão, João, de frente para a câmara, com o corpo dobrado, rosto junto aos joelhos, tapado pelas mãos. Do lado direito, junto ao vértice do colchão, está Maria, ajoelhada. Ouve-se, desde o início do plano, o Aleluia do motete Exultate jubilate, K. 165 de Mozart, cantado por Teresa Stich-Randall. A direcção e de KarI Ristenpart (Musidisc). Rigorosa oposição música- imagem, não isenta, confesso, de leve ironia. Em diagonal, relativamente à câmara, Maria avança para João, de joelhos, e abraça-o. A figura desenhada evoca a imagística associada às Pietàs.
22. Noite. Espaço completamente negro, à excepção de um foco de luz altamente direccional instalado na perpendicular da câmara e cuja presença só é perceptível quando um objecto o atravessa ou nele se instala. Som directo, montado com silêncio e um fragmento vocal da Região l dos Hymnen de Karlheinz Stockausen, numa realização electrónica dos estúdios da Rádio (WDR) de Colónia (Deutsche Grammophon). Maria, completamente nua, volteia no espaço, aparecendo e desaparecendo da imagem, como quem é atraída e repele a luz, até desaparecer por completo.
23. Dia. Ruínas de uma casa. Silêncio. Plano muito curto: a sua duração é de 4 segundos – intervalo dissonante.
24. A continuação fantasmática do plano 14, com a sua carga de memória.
25. Dia. Sala, junto à janela. Maria desfecha 6 tiros de revólver para fora de campo, na direcção do colchão.
26. Noite. Sala fracamente iluminada, junto à janela. Atravessado sobre o colchão, distingue-se mal o corpo nu de João, de barriga para baixo, a cabeça voltada para o lado direito. Som directo. Ouvem-se passos. O vulto de Catarina entra em campo. Pára um pouco a olhar para o pai e chama:
CATARINA: Pai. (Pausa). Pai.
Avança mais alguns passos em direcção a uma mesa, pega num objecto que se distingue mal (eu juraria que é um gravador) e vai sentar-se, no rebordo do colchão, ao pé do corpo nu do pai, o gravador pousado nos joelhos. Ouve-se um ruído que deve ser (é com certeza) o do ligar do gravador. A abrir, canto de passarinhos (não previsto) que, por certo, teimou em escapar da gravação anterior, em principio cuidadosamente apagada. Verdade que ninguém encomendou chilreio de passarada, mas como não me move a mais leve animosidade contra os simpáticos bichos deixei que, sem qualquer cerimónia, cantassem no filme. De igual modo vinda do gravador, começa a ouvir-se a voz de João, coincidindo com o apagar e acender intermitente de clarões do exterior e que, assim, continuam até ao final do plano. João diz, portanto, o seguinte :
VOZ DE JOÃO: Que antes de mais nada se enterre de vez o conceito de família! Se te amei como fruto do desejo natural, foi apenas na medida em que te mostraste inalienável daquilo que eu considerava ser a necessidade humana, a necessidade lógica; na medida em que sempre encarei a conciliação dessas duas necessidades como a única maravilha ao alcance do homem, como a única hipótese que lhe resta de se furtar, de vez em quando, à sua ruim condição. Passaste da não -existência à vida graças a um desses acordes felizes, os únicos para os quais me apraz ter bom ouvido. Foste considerada coisa possível, e certa, no momento em que, com o amor mais seguro de si, um homem e uma mulher te desejaram. Afastar-me para longe de ti! Revestia-se para mim da maior importância ouvir-te, por exemplo, responder, um dia, com toda a inocência, a essas perguntas que as pessoas crescidas fazem às crianças: “Com que é que se pensa, como é que se sofre? Como é que se soube o nome do sol? Donde é que a noite vem?” Como se elas próprias o soubessem! Já que, para mim, és a criatura humana em toda a sua autenticidade, deverias, contra tudo o que é previsível, ser tu mesma a ensinar-mo… Desejo que sejas loucamente amada.
Terminada a leitura do texto, termina o som directo. Travelling de recuo, descobrindo todo o espaço. Com arranque do travelling começa a ouvir-se o Dies Irae do Requiem, K 626 de Mozart, na interpretação de Bruno Walter (Philips). Final do travelling.
27. Actualidades: Noite. Clarões de um gigantesco incêndio sobre uma cidade. Panorâmica para um prédio que se desmorona, consumido pelas chamas. Este plano repete-se várias vezes em “pescadinha”, ou seja: integral e sucessivamente, até ao fim da música.
João César Monteiro
Publicado no livro Morituri te Salutant. Edição & etc, Nov. 1974.