CONTA-SE simplesmente: no Verão de 1965 eu rebentava (rebentava nada) se não fizesse um filme. Por tuta e meia, vendeu-me o Paulo Rocha algumas latas de negativo 16 m/m e, no minuto seguinte, aparelhado com uma Paillard e a boa-vontade de amigos e conhecidos, lancei mãos à obra.
Sol de pouca dura. Essa primeira tentativa ficar-se-ia por umas escassas bobinas de película impressionada. Das pessoas a ela ligadas, apenas a Paula viria a figurar na versão concluída em 1970, que, não contando com a dedicatória, abre com a recuperação da maior parte das imagens em bruto (ou quase) desse primeiro, juvenil arrobo cinematográfico, chamemos-lhe.
1. Sobre fundo de cartão negro, em letras brancas minusculamente colocadas na parte inferior do enquadramento: «à Teresa, este nosso velho filme».
2. Ouve-se o ruído chato e (continuo de uma máquina de projectar, enquanto, num écran, são projectadas imagens do material acima mencionado. Em voz off e desamparada por defeituosa revelação da negativo de som, sobrepõe-se o seguinte comentário: «Nesse tempo, vivíamos extremamente mal. Pensávamos fazer filmes e, regressados há pouco de Londres, com a nossa má cabeça devidamente iludida, éramos bem a imagem do Entusiasta.
Estávamos em 1965 e muitas inocências iriam, entretanto ser violadas.
Este país, senhores, é um poço onde se cai, um cu de onde se não sai.
De qualquer modo, um filme, mesmo informe, inacabado como um nado- morto, é o prenúncio da nossa própria história, a projecção silenciosa dos nossos fantasmas.
É tudo: passemos adiante sem lamentações.»
Após a leitura, a imagem fica branca. Tentou-se estabelecer com o plano seguinte um raccord cromático que não resultou em virtude das tonalidades de branco ligarem mal.
3. Sobre fundo branco, em letras negras, o título do filme: QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO – um provérbio cinematográfico.
4, 5, 6, 7 e 8. Sobre fundo de cartão negro, em letras brancas, separadas por 2 fotogramas de fita branca, seguem-se as legendas respectivamente com o nome dos actores, assistentes, operador e técnico de som, músico, realizador, aliás escritor, e entidade subsidiadora. Por ingratidão, foram esquecidos alguns amigos e a Fundação Ford que, por intermédio da Association pour la Liberté de la Culture, entrou com 20 contos, aliás integralmente aplicados em proveito do filme, vá-se dizendo. (*)
9. Salvo erro, 1 minuto e 25 segundos de música que deveria funcionar sobre a imagem negra, mas que, na realidade, funciona sobre um reles e desgostante cinzento -esgoto.
Ouvida a música, pode quem quiser entrar no filme propriamente dito.
(*) Posteriormente constou que essa Associação era financiada pela CIA.
Décor: Martinho da Arcada. Dia de inverno, filmado no pino do verão.
Resumo da cena: Lívio e Mário, inicialmente sentados numa mesa de café. Lívio confessa ao amigo que se acha apaixonado por uma jovem estudante. Falta-lhe é o dinheiro para dar livre curso aos arrebatamentos do coração. Mário decide ajudá-lo a remendar a situação financeira.
10. Grande plano de um copo com água. Precipitada na vertical peia
mãozinha de um precioso colaborador, uma barata cai ruidosamente plof! dentro do copo.
11. Com uma beata ao canto da boca, Lívio olha na direcção do tecto e, depois, do copo, dizendo:
LÍVIO: O que é isto? Já caiem baratas do tecto?
12. Mário, que lê o Diário de Notícias, tem a cara tapada pelo jornal e, sem se mover, diz:
MÁRIO: Repugnante!
13. Lívio deita uma baforada de fumo para dentro do copo.
LÍVIO: Levanta-se um tipo cedo para sacar uns maravdhis e um corno!
14. A tonalidade fotográfica deste plano é diferente da dos anteriores. Deve-se isso ao facto de ter sido filmado um ano depois, com condições também diferentes de luz. Uma atonalidade de emergência nunca poderia resultar, a não ser no plano do efeito tapageur, dentro de uma cena pensada em moldes de uma construção ainda clássica, apesar da destruição harmónica da inter-ligação dos planos. Esta assenta, no entanto, apenas na ausência de raccords de posição dos actores, e, se é inegável que isso se instaura como abrupta e mal-polida figura de estilo, não pulveriza o fluido da continuidade narrativa da cena, como, aliás, se pretendia.
Lívio rói as unhas. Mário continua a ler o jornal.
LÍVIO: De qualquer modo, não posso falhar esta senhora.
O meu velho dizia que falhar uma senhora é partir para a vida com o pé coxinho.
Tinha pensado convidá-la para um jantar fino. Que tal um jantar fino?
Depois do jantar as senhoras ficam doces e coradas.
Mário pousa o jornal sobre a mesa.
MÁRIO: Era tempo de deixares de ser parvo e romancista russo. (*)
(*) «Não sou parvo nem romancista russo aplicado…» — Álvaro de Campos, Poesias.
Com a mão apoiada na mesa, faz timidamente (o actor era envergonhado) o chamado caralhinho, enquanto diz:
MÁRIO: Vocês já coiso?
Lívio, um tanto repugnado pela grosseria, protesta:
LÍVIO: A Mónica é diferente. Garanto-te que é diferente. Vinte anos. Faculdade de Letras.
Senta-se a um cantinho e fica assim a ouvir Bach.
Sobre o «assim», Lívio ganha uma aparência beatífica que, de certo modo, se quis um tanto ambígua e enigmática. É, em minha opinião um movimento -chave dentro do jogo de variações não- figurativas de que a personagem é tecida. Leve-se este reparo à, conta de um desabafo, dado que não estamos aqui para apontar o sentido do nosso engenho.
MÁRIO: Emprenha pelos ouvidos enquanto aborta com os olhos. A música faz-me sono e o sono é a antecâmara da morte. Queres comer alguma coisa?
Ao dizer esta frase, o actor enganou-se, e a frase que se ouve é a seguinte: «Emprenha pelos ouvidos enquanto aborta pelos olhos. A música é a antecâmara da morte», etc. Como é obvio, tendo em reparo que durante as filmagens a distância da câmara era considerável em relação aos actores, não se conseguia ouvir o que diziam e, não existindo som de referência, só nos apercebemos do erro durante a dobragem. Tal como ficou, a frase remete para uma noção romântica da música que, muito embora não se aplique de todo à música de J. S. Bach, parece relativamente correcta no que toca à música de Wagner e, nomeadamente, à fascinada espécie de sonolência que o Tristão pode provocar no ouvinte. Não é bem a mesma coisa, mas enfim!…
LÍVIO: Não me apetece. Mário. Não me apetece. Marius. Precisava de sacar algum em grande para começar não sei quê, não sei como. Uma cómica viagem não sei onde, nem porquê.
Olha para a barata.
LÍVIO : Esta já não mexe!
MÁRIO: Repugnante!
O teu mestre diz algures que «é mais difícil renunciar ao amor do que à vida». (*)
(*) L. F. Céline: Voyage au bout de la nuit.
LÍVIO: É porque nesta vida o amor não é pertença de cada criatura.
Temos de o mendigar rancorosamente e o que ainda nos vale é sermos tão mal agradecidos. Meu querido monte de baba e ranho. Meu querido isto ou aquilo. Passei isto, passei aquilo, e isto por que passei não compensa por sombras o que guardei.
Pela última vez (promessa quiçá vã de não insistir nos apartes) o autor chama a atenção para o uso do pronome demonstrativo «esta», na frase «nesta vida», indispensável correcção ao sentido da frase de L.F. Céline citada por Mário na réplica anterior.
15. Lívio olha na direcção de Mário. O enquadramento é semelhante ao do plano 13, assim como o do plano 16 é semelhante ao do plano 12. Poder-se-ia falar duma relação especular entre estes pianos, aliás bastante típica nas découpages tradicionais: dois planos aproximados (A e B), na mesma escala, um plano de conjunto (C) e, de novo, dois planos aproximados (A’ e B’ ), na mesma escala dos anteriores. A única anormalidade é aqui a excessiva duração do plano de conjunto (14), no interior da cena.
LÍVIO: Pode ser que dê em doido furioso, e até nem digo que não — sapato, sapato, sapato — mas o que é que me impede?
16. Mário coça a cabeça, olhando na direcção de Lívio.
MÁRIO: Decididamente, hoje é o meu dia de bruxa boa para o lívido Lívio ir passear as donzelas.
17. Conjunto, vendo-se várias mesas vazias. Mário levanta-se e abre o Diário de Notícias. Lívio segue-o com o olhar. Mário lê o jornal em voz alta.
MÁRIO: Missa do 8° dia… Faleceu… Faleceu…
Anda daí: tive uma ideia para te arranjar algum!
Mário sai de campo, secundado por Lívio.
18. Panorâmica acompanhando Mário até uma cabine telefónica, no interior do café. Lívio entra em campo e observa-lhe os movimentos. Mário consulta uma lista telefónica.
MÁRIO: Sabões, Sachetti, Sacote Fitzgerald, Sade, marquês de, Saias, Sayonara, Saint-Tropez, Saiote, Saladas… Cá está: Saladas!
Toma nota!
Mário dirige-se para a porta de saída, sempre secundado por Lívio, enquanto canta:
MÁRIO: Os marinheiros aventureiros
são sempre os primeiros
na terra e no mar.
Repete, em coro com Lívio, a estrofe da canção que figurava deliciosamente no filme «Eram Duzentos Irmãos». Saem de campo.
Décor: A parede de um prédio. Janelas do rés-do-chão com escritos.
Resumo da cena: Inteirado dos propósitos do amigo. Lívio manifesta-lhe aquilo que poderemos qualificar de temor pela sua própria incapacidade. Mário sossega-o, mas Lívio ainda tenta propor-lhe uma alternativa menos brutal que não exclui, antes pelo contrário, o recurso a uma permanente auto-ironia.
19. Especados no passeio, Mário e Livio olham para fora de campo e, depois, entreolham-se.
LÍVIO: Não sei se tenho lata.
MÁRIO: Eu falo. Só tens que fazer um ar mais triste.
20. Lívio começa a andar para um lado e para outro, acompanhado em panorâmica. Ouve-se o ruído de trabalhos em obras de construção, e mesmo o de britar pedra. Não houve, na escolha destes ruídos, o propósito moral de os fazer recair sobre a conduta das personagens, houve, isso sim, o propósito de inserir, nos dados desta ficção, elementos de um real que lhe é alheio, o que, como é óbvio, amplifica dialecticamente o campo de significação em que são jogados.
LÍVIO : Não seria melhor uma carta? Qualquer coisa do género: dois estudantes pobres e em desespero de causa, tendo tomado conhecimento do falecimento do esposo de V. Ex.ª, o valoroso almirante Saladas, vem, por este modo, manifestar as suas sinceras e sentidas condolências…
MÁRIO (entrando no jogo): …por tão irremediável perda…
LÍVIO: …e apelar para o bondoso coração…
MÁRIO (corrigindo): …o piedoso coração…
LÍVIO: …certos de que o condoer-se com a dor alheia mitigará a própria dor.
No começo do plano seguinte continua a ouvir-se em off a voz de Lívio.
Décor: Patamar de um prédio de boa aparência.
Resumo da cena: Apenas o resultado da acção que, pelos vistos, foi coroada de êxito. A criada da viúva ‘do almirante Saladas entrega aos dois amigos um embrulho com algumas roupas do defunto. Bastante parcas por sinal. Suspeita-se, digo eu, que a viúva não deu o espólio todo, sobretudo o mais valioso, a menos que o almirante estivesse realmente na mais negra penúria.
De qualquer forma, como a cavalo dado não se olha o dente, os dois amigos parecem ficar divertidos assim que a criadinha, chamada pela senhora (a voz é do Manuel Jorge Veloso que, por acaso, apareceu no estúdio na altura da gravação), lhes fecha delicadamente a porta nas caras, fazendo-lhes sinal para que esperem. Lívio desaparece escada abaixo com o embrulho, enquanto Mário se deixa prender pelas boas atenções da deliciosa criada, a minha boa amiga Dona Antoninha, de tão vetusta virtude.
21. Mário em frente da porta. Lívio encostado ao corrimão.
A voz de Lívio continua o discurso do plano anterior.
LÍVIO (off): …imploramos-lhe nos ceda alguns agasalhos do defunto para suportarmos blablabla os rigores da invernia.
A criada entreabre a porta, carregando um embrulho.
CRIADA: A minha senhora não os pode receber, mas mandou isto com umas roupinhas. Eram para algum pobrezinho…
Sobre o «pobrezinho», Lívio volta-se de costas para a criada, baixando o olhar para fora do enquadramento, na direcção das escadas. A criada entrega o embrulho a Mário.
MÁRIO : Ó olhos-lindos, diga à sua senhora que os nossos corações a acompanham na dolorosa ocorrência que foi a perda de tão nobre figura de esposo e marinheiro. A nossa gratidão estará eternamente com ela, aonde quer que os nossos passos nos arrastem.
SENHORA (off): Ó Rosinda!
A criada faz-lhe sinal para esperar e esgueira-se para o interior, fechando a porta.
Mário começa a rir. Lívio acompanha-o com um evidente mal-estar que, no meu fraco entender, é um dos instantes mais sublimes do filme, e fica a dever-se por inteiro (daí o meu à vontade) aos méritos de um prodigioso actor (Luís Miguel Cintra) a acertar em cheio.
22. Mário atira o embrulho a Lívio. Este recebe-o como se fosse uma bola de râguebi e desce as escadas.
23. Mário prepara-se para o seguir e sai de campo. Entra em campo o braço da criada com um par de sapatos na mão. Mário entra de novo em campo, acaricia os sapatos e, depois, o braço da criada. Pega nos sapatos, puxa a criada para si, desfaz-lhe o cabelo. Riem. Em homenagem aos Verdes Anos, a criada diz:
CRIADA : Ai minha senhora!
Saem lentamente de campo.
Décor: Um banco no jardim do Príncipe Real.
Resumo da cena : Lívio experimenta os sapatos do defunto. Descobre que os sapatos não só não lhe servem como têm uma utilidade muito restrita. A oferta da viúva do almirante está destinada a uma casa de penhores. Se há dias em que um tipo não deve tocar num metro de película, este foi um deles. A cena é efectivamente aquilo a que se chama a merda. Nunca acertei com o enquadramento nem com a direcção dos actores. Cortei o mais que me foi possível e, no entanto, a maior dificuldade reside na ligação entre dois planos, um de conjunto (24) e um grande plano (25). O Lopes é o único gajo que, por cá, às vezes faz isso bem. Questão de olhómetro; insuficiência a limar. Adiante
24. Mário está sentado num banco do jardim, seguindo mais ou menos Lívio, que anda de um lado para o outro experimentando os sapatos. Acaba por se sentar ao lado de Mário, dizendo:
LÍVIO : Inútil. O morto tinha os pés maiores do que uma língua de sapo.
MÁRIO: Devem fazer bolhinhas no dedo grande.
Lívio descalça os sapatos e calça as suas botas. Pega de novo nos sapatos.
LÍVIO: Precisava de uns, mas estes só servem para ir à ópera.
Fica a olhar os sapatos. De repente, dá um salto para cima do banco.
25. Grande plano de Lívio brandindo os sapatos na direcção da cãmara
LÍVIO : Chaço. Chaço com eles.
Na actual versão do filme, o plano acaba sobre a última frase de Lívio: «Chaço com eles.» Dá-se, no entanto, a indicação da continuação do plano e dos seguintes, não numerados, cortados na montagem.
LÍVIO: Há quinhentos anos que não ponho os butes na ópera.
A partir de «quinh…», Lívio sai de campo pelo lado inferior do enquadramento. A câmara continua sobre um fundo da ramagem de uma árvore.
a) Lívio, de novo sentado no banco, ao lado de Mário.
LÍVIO: Também… estou-me nas tintas.
Mário levanta-se.
MÁRIO: Temos que nos despachar antes que o prego feche.
Sai de campo, seguido por Lívio.
Os dois amigos, de costas para a câmara, afastam-se.
b)
LÍVIO: Quanto é que achas que vão dar?
MÁRIO: Pouco. É preciso cumprir um regime de austeridade.
Em voz de falsete, imita a voz do extinto Presidente do Conselho, citando o início de um dos seus discursos:
MÁRIO: Portugueses : A África arde. Mas porque arde a África?
Para além do disparate que este plano era, o que se perdoa, a sua não eliminação parecer-me-ia imperdoável, por se tratar de uma piscadela de olho politiqueira e demagógica pouco compatível com o carácter do filme.
Décor: Uma casa de penhores. Uso de luz artificial.
Resumo da cena: Após a avaliação, o penhorista faz a sua oferta a Mário. Lívio não está presente e cada qual pense o que quiser. Pela parte que me cabe, penso que fiz bem em o poupar a esta cena. Mário, de início, não aceita, mas reconsidera e volta atrás. Na banda sonora ouve-se o diálogo entre uma cliente e um empregado da casa.
26. O penhorista examina a qualidade do tecido de um fato de homem.
Em off, ouve-se o seguinte :
Voz de um empregado (off): Traz o seu bilhete de identidade?
Voz de mulher (off): Trago sim senhor.
Voz de um empregado (off): Quanto é que a senhora pretendia?
Voz de mulher (off): Não sei. Os senhores é que sabem.
Voz de empregado (off): Servem-lhe quinhentos escudos?
Voz de mulher (off): O anel é de ouro, de estimação. Isso é uma exploração que os senhores estão a fazer.
Voz de empregado (off): Pois é, minha senhora, mas só lhe podemos dar quinhentos.
Voz de mulher (off): Então aceito, muito obrigada.
O penhorista sai de campo, transportando o fato.
27. Mário está encostado ao balcão, em cima do qual vemos os sapatos. O penhorista chega, pousa o fato e diz:
PENHORISTA : Trezentos por tudo.
Mário faz um ar enjoado. Começa a ouvir-se uma «sinfonia» de relógios, desde o de cuco ao que toca uns acordes do hino de Fátima. Mário embrulha o fato e prepara-se para sair, ante a passibilidade do penhorista. Quando Mário vai a sair, o penhorista chama-o :
Olhe os sapatos!
Mário volta atrás, pega nos sapatos, e sai.
28. Mário sai por uma porta de batentes que, ao abrir-se, provoca o toque de uma campainha. Pára um pouco, reconsidera, e volta a entrar na casa de prego. A câmara, que não se deu ao trabalho de entrar outra vez, fica sobre a porta, que é envidraçada e tem escrito a negro a palavra PENHORES, com chapelinho e tudo.
Décor: Rua.
29. Grande plano das mãos de Mário e de Lívio (na eventualidade as do Nuno Júdice e as minhas). Mário entrega a Lívio a quantia que apurou.
MÁRIO: Deram trezentos, os filhos da puta. Fico com cinquentas para ajudas de custo.
Guarda uma nota de 50 escudos no bolso.
LÍVIO : Não é muito decente. Tu é que fizeste tudo. Pelo menos fifti-fifti.
MÁRIO: Para a próxima avisa-me com antecedência. Detesto ter que improvisar.
LÍVIO : Não haverá próxima.
Acaba aqui a primeira parte do filme, e acaba bem.
Mãozinhas com o taco, para fingir que o taco é que era importante quando o importante, afinal, era ter chegado à conclusão de que o percurso até àquele plano foi rigorosamente necessário porque foi rigorosamente inútil. Passos perdidos? Não há passos perdidos, ajuntaria o Breton. Há um filme que se prepara para ser engolido pelo seu fantasma. Faltam cerca de 15 minutos para o seu termo e o autor começa a fazer a sua pequena distribuição de pérolas a porcos. Seja como seja, é fora de dúvida que o filme se irá dimensionar em outras esferas, pela recusa de continuar a ser uma entidade corpórea, e se transforma em puro Jogo órfico
Décor : Praia do Guincho.
30. Mar agitado. Música que continua no começo da cena seguinte. Havia o perigo de o plano ganhar uma carga metafórica que não interessava. Em princípio, seria mais assisada a escolha de um mar dominado pelo repouso das linhas horizontais, garantindo a neutralidade da superfície pretendida. Optou-se pela solução mais arriscada e pediu-se ao músico que contrariasse o mais possível a «emotividade» da imagem. Considero o resultado satisfatório, muito embora me pareça que a música nem sempre evita certas
acentuações de cariz irónico. A Abelha, por exemplo, é bastante mais prejudicada por «efeitos de severidade» obtidos dentro da escrita linear do Manuel Jorge Veloso. É pena, porque a música não acompanha sequer a sombra do empirismo combinatório da montagem do Lopes.
Décor: Snack-bar do hotel Flórida, sito na Praça do Marquês de Pombal, junto a uma das janelas.
Resumo da cena: Mónica e Lívio encontram-se e conversam.
31. Mónica ri abertamente. A música do piano anterior continua a ouvir-se.
32. Os dois, sentados em frente um do outro, numa mesa junto à janela. A música continua a ouvir-se até que Lívio pega no pulso de Mónica. Ruídos de ambiente, discretos e insignificantes.
Assinale-se que, entretanto, a qualidade técnica do som melhora a partir desta cena, para voltar a piorar na última bobina. Determinar as causas dessas oscilações foi sempre matéria duvidosa, mas suspeito, ainda que sem grande consequência, que elas se devem a uma deficiente revelação do negativo do som.
LÍVIO : Olha para os ponteiros do relógio. O que é que vês quando olhas para os ponteiros do relógio?
MÓNICA (rindo): Nada de especial.
33. Lívio.
LÍVIO: Fecho os olhos e estou no meio do mar. O mar é uma alegria. Nada soluça. O tempo foi roído pelo silêncio. Ao longe, um país sem passado nem futuro. Singular e miraculoso. Abro os olhos e só reconheço a tua eternidade. Suponho que já é tarde. Tens de ir para casa.
34. Mónica.
MÓNICA: Porque é que dizes loucuras? Fiquei porque quis. Aliás, nem se está mal. Vê-se a cidade.
Olha para o exterior.
35. Lívio.
LÍVIO :Bom. Estou derrotado e sem saber o que dizer. Diz. Faz. Diz que faz, mas não faz. Desfaz. Não me queres cobrir de flores brancas?
Vou-te confessar um segredo. Ou melhor: se eu escrevesse as minhas confissões começava-as assim: Trago constantemente comigo a caveira do pobre Yorick…
Pega num livro que está sobre a mesa.
36. Lívio com a cara tapada por um volume das Líricas de Camões. Distingue-se apenas o movimento dos seus olhos.
LÍVIO: Um mover de olhos brando e piedoso,
Sobre o rosto de Mónica, a voz de Lívio que continua a leitura do soneto de Camões. Mónica acompanha a leitura movendo os lábios, mas sem emitir qualquer som.
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto
De qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;
38. Lívio e Mónica.
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe
LÍVIO e MÓNICA: e o mágico veneno que pode transformar meu pensamento.
39. Mónica.
MÓNICA: Tens uma bela voz quando lês Camões. Gostas de Camões?
40. Lívio olha fixamente na direcção de Mónica. Imaginemos um soneto canónico em que um dos versos tem mais 4 ou 5 sílabas que os restantes. Sucede o mesmo com este plano, que colocado nas mãos de qualquer montador de qualquer parte do mundo ficaria com uma boa meia dúzia de segundos a menos. Eu penso, todavia, que é preciso querer errar para que se acerte absolutamente.
41. Mónica levanta-se e diz a Lívio qualquer coisa que não se percebe, se calhar porque não interessava que se percebesse. Lívio segura-a, impedindo-a de sair.
LÍVIO : Mónica, Mónica, Mónica não me abandones,
42. Grande plano do rosto de Mónica, tomado do ponto de vista de Lívio, vulgo plano subjectivo. A qualidade da luz é diferente do resto da cena. Imagem levemente sobre-exposta, queimada por uma tonalidade de brancos. Não foi acidente, desta vez. A intenção era transfigurar um rosto.
LÍVIO (off): disse ainda o fantasma antes da luz o absorver completamente.
Quem a não ser vida, tem o dom de tocar a vida?
Mónica sai de campo.
43. Lívio solta uma gargalhada e esconde o rosto com as mãos.
A imagem funde em branco e, sobre o écran completamente branco, entra música.
Décor: Um quarto com uma cama ao fundo, junto à parede. Luz artificial.
Resumo da cena: Existem, de facto, duas acções simultâneas: uma, visível na imagem, e outra, audível no som. Neste, trata-se muito provavelmente da continuação da conversa entre Lívio e Mónica. Naquela, presumo que a descrição feita a seguir dará a sua conta aproximada.
44. Antes do mais, é conveniente esclarecer que este plano foi, a meu pedido, filmado pelo sr. António -Pedro Vasconcelos, atendendo a que, farto do filme, me deslocara, no entretanto, para Itália em viagem nupcial. Ao sr. Vasconcelos foram deixadas todas as indicações julgadas úteis para a boa execução do plano, tarefa de que ele se encarregou escrupulosamente, segundo creio, e pela qual lhe estou muito grato. Bem feia acção seria, pois, eu vir agora queixar-me do trabalho generosamente despendido por um colega em proveito de um filme meu, mas lá que o enquadramento é uma boa merda, isso é. Então eu tenho que gramar aquelas verticais todas abauladas sem ficar roxo de cólera? E quem é que o mandou, seu fantasista, pôr o senhor da senhora que está na cama a ler os Cahiers du Cinéma? Não vê que isso desvia a atenção do movimento obsessivo do plano? Era preferível ter posto o homem a brincar com a pila!
Lívio, no lado esquerdo do enquadramento, está sentado, de costas para a câmara, a baloiçar-se numa cadeira de baloiço. Ao fundo, semi-deitada numa cama, está uma senhora loura, razoavelmente tapada pela roupa da cama; não o bastante, porém, para que não se aperceba que a qualidade da pele é um assombro.
Sorridente, a senhora fala com Lívio, mas da banda sonora chegam-nos apenas, em crescendo, ruídos de rua, aos quais se mistura o diálogo seguinte em voz off:
MÓNICA (off): A que horas costumas jantar?
LÍVIO (off): Varia muito. Agrada-me jantar como os pássaros. Aqui e ali.
MÓNICA (off): Gosto da vida livre, mas com os pais é inútil. São uns chatos.
Longo silêncio.
LÍVIO (off): O meu pai era um tipo melancólico. Caçava moscas e lia Camilo. Morreu.
A minha mãe olhava-me com desgosto. Sem razão. Parece-me. Não sei. Digamos que hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo. Não podes perceber. Talvez enlouqueça o suficiente para gritar ai ai. Um dia destes vou-me embora. Paris, Roma, Milano, London Town, Florença, a bela, Cesário Verde, São Petersburgo — o Mundo.
Afinal os crimes são coisas que se repetem, etc.
O último período é repetido várias vezes em diminuendo, até se apagar.
Entretanto, na imagem, pelo lado direito do enquadramento, entra um senhor que se instala triunfalmente na cama, ao lado da senhora.
Começa a ouvir-se o ruído da cadeira de baloiço a baloiçar e, também, ruídos de uma estação de caminho de ferro: um comboio a partir, por exemplo. Lívio levanta-se de chofre, sacudindo violentamente o braço, como quem arremessa um objecto ao chão.
Sai batendo com a porta. O senhor da senhora ainda espreita para fora do enquadramento, mas acaba por encolher os ombros, olhando para a senhora.
Décor: Estação de caminho de ferro do Rossio. Cais de partidas e chegadas.
45. Lívio persegue um comboio que acaba de partir, mas não o consegue apanhar.
46. No interior de uma carruagem, vemos Mónica sentada num lugar, junto à janela.
MÓNICA: Não sei nada. Não sei nada? Não sei nada!
Tentou-se aqui que as inflexões da frase fossem iguais às de Judy Garland na cena de A Star is Born em que a personagem por ela incarnada tenta familiarizar-se com o novo nome: Vicky Lester, e que Jean-Luc Godard também retoma em Vivre Sa Vie. Todavia, as condições de filmagem foram de tal forma diabólicas que tenho que me dar por satisfeito em ter, pelo menos, conseguido filmar o plano.
Não existindo qualquer autorização para efeitos de filmagem,
SECRETARIA DE ESTADO DA INFORMAÇÃO E TURISMO
DIRECÇÃO- GERAL DA CULTURA POPULAR E ESPECTÁCULOS
SECÇÃO DOS SERVIÇOS DE ESPECTÁCULOS
REPARTIÇÃO DE EXPEDIENTE
1124/72
CE/EV
Exmo. Senhor Gerente de
FILMES LUSOMUNDO SARL
LISBOA
Para conhecimento de V.Exª. comunico que a Comissão Exame e Classificação dos Espectáculos, em sessão de 11 do corrente, deliberou aprovar o filme “QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO, MORRE DESCALÇO”, apresentado a exame com o nº 210/72, e classificá-lo como espectáculo do Grupo D, com os seguintes cortes:
a) a frase : “Este país, senhores é um poço onde se cai e culpa donde se não cai”;(*)
b) todas as fotografias do Chefe do Estado no jornal, tanto em grande plano, como na manifestação;
c) fotografia com uma formação militar quando as ouve a palavra “repugnante”;
d) gesto obsceno com a mão;
e) canção dos marinheiros e todas as sequências ao almirante Saladas;
f) a expressão “filhos da puta”;
g) a frase ” ao longe um papel
Apresento a V.Exª. os meus cumprimentos.
A bem da Nação
Lisboa, 15 de Abril de 1972
O CHEFE DA REPARTIÇÃO
(Manuel Henriques da Silva)
(*) Perceberam mal os censores. A frase dita no filme é: «Este país é um poço onde se cai, um cu de onde se não sai».
utilizou-se um comboio com destino a Sintra, e o plano foi executado no trajecto entre as estações do Rossio e de Campolide, depois da saída do túnel, isto é: dispunha-se cerca de 8 minutos para a sua preparação e execução, o que, além de insuficiente, excluía qualquer hipótese de repetição.
47. O negativo do plano 45, mas com uma duração ligeiramente inferior.
Décor: Espelho.
48. Grande plano de Mónica (ou o seu duplo), face a um espelho.
MÓNICA: E quando ele se voltou, a sua amada sumira-se. Como se a terra a houvesse tragado. Procurou-a em todos os lugares, perseguindo incessantemente a querida imagem, até que, um dia, já exausto e, de entre outros bens, despojado da razão, descobriu que era a si próprio que chamava. Orfeu esquecido do seu canto só pôde mostrar a inexactidão da pobre face.
Ouve-se o telefone. Mónica sai de campo, atende e diz:
MÓNICA (off): Ah! És tu. Lívio!… Não quero que apareças!
Desliga o telefone e volta a passar no espelho, mas em plano americano.
49. Escrita num caderno quadriculado, a palavra HIPÓTESE. Volta-se a folha e, no cimo da página, a seguinte frase: O cinema é uma vigarice (Godard). mas essa vigarice pode (deve) ser superada. A mãozinha de Lívio (a minha) escreve:
Regressarei com membros de ferro, a pele sombria, o olhar furioso: sobre a minha máscara julgar-me-ão de uma raça forte.
Terei ouro: serei ocioso e brutal. As mulheres cuidam destes ferozes enfermos regressados dos países quentes. Meter-me-ei, nos assuntos políticos. Salvo.
Agora, sou maldito, tenho horror à pátria. O melhor é um sono bêbedo, no cais (*).
(*) Arthur Rimbaud: Une saison en enfer. Tradução de Nuno Júdice.
Décor: Sintra. Exteriores.
50. Lívio encostado a uma balaustrada, provavelmente depois de uma deambulação. Qualquer coisa fora de campo parece chamar-lhe a atenção.
51. Plano muito rápido. Provavelmente é Mónica que, acompanhada de uma amiga, atravessa uma rua.
52 e 53. Lívio desce umas escadas, acompanhado em panorâmica. Raccord. Continuação da panorâmica até descobrir duas raparigas que também descem as escadas. De costas para a câmara, Lívio pára e chama por Mónica. Esta volta-se.
54. Uma esplanada. As duas raparigas conversam. Lívio, sentado entre elas, alheado da conversa que, aliás, não ouvimos, certamente por não interessar por aí além. Começa a ouvir-se Lívio em voz off:
LÍVIO (off) : Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não se encontravam, como agora, incomunicáveis.
Eram, além do mais, muito diferentes: nem coincidiam os seres, nem coincidiam as formas. Os dois reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pêlos espelhos.
Uma noite, as gentes dos espelhos invadiram a terra. Era muito grande a sua força, mas ao cabo de sangrentas batalhas, as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este repeliu os invasores, aprisionou-os nos espelhos e impôs-lhes a tarefa de repetir, como se fora em sonho, todos os actos dos homens.
Privou-os da força e da figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia.
porém, sacudirão esse letargo mágico.
O primeiro a acordar será o Peixe. No fundo do espelho aperceber-se-á uma
linha muito ténue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra.
Começarão, depois, a acordar as outras formas. Pouco a pouco, diferenciar-se-ão de nós, pouco a pouco deixarão de nos imitar. Quebrarão as barreiras de vidro e de metal e desta vez não serão vencidas. Com as criaturas dos espelhos, combaterão as criaturas das águas.
Antes da invasão ouvir-se-á, vindo do fundo dos espelhos, o rumor das
armas. (*)
(*) Jorge Luís Borges: Manual de Zoologia Fantástica. Tradução de Luiza Neto Jorge.
55. Pinhal. Lívio entra lentamente em campo, de costas para a câmara. Começa a ouvir-se música. Mónica entra também em campo. Lívio volta-se para ela. Aproxima a mão do rosto de Mónica. Esta encosta-lhe o rosto à palma da mão. Panorâmica lenta. Lívio fecha as pálpebras de Mónica com a mão. A câmara continua o seu movimento abandonando Lívio e Mónica e indo fixar-se na ramagem dos pinheiros batidos pelo vento. Desfoque lento. Fim da música.
56.(*) Junto ao portão gradeado da casa de Mónica. Mónica está voltada para a câmara e Lívio de costas, separados pelas grades do portão. Lívio diz:
(*) Cortado, na montagem.
LÍVIO: É melhor ires para dentro.
Está a arrefecer.
Mónica acena que sim com a cabeça e sai de campo.
57. Grande plano do rosto de Lívio fixando a câmara com o olhar.
Em silêncio. Ao fim de algum tempo, ouve-se em off a voz de Lívio:
LÍVIO (off) : Como um cão, disse ele, e era como se a vergonha lhe sobrevivesse. (*)
(*) Kafka: O Processo.
Sai de campo. Começa a ouvir-se música. O foco é feito para o fundo. Descobre-se uma paisagem dominada por um palacete. Fusão em negro. A música continua no negro, até ao fim.
Este plano também foi filmado pelo sr. António-Pedro Vasconcelos. No objections. Pediu-se-lhe para descarregar um magasin de 120 metros (cerca de 4 minutos) sobre o rosto completamente imóvel da personagem. O único movimento do plano, para além da saída de campo, deveria ser, como é, o baixar das pálpebras da personagem. O sr. Vasconcelos suspendeu a filmagem ao 2.° minuto (paciência), mas, em contrapartida, o operador, que era o Manuel Costa e Silva, teve a ideia de fazer o foco para o fundo, depois do campo estar vazio. Foi graças a isso que me converti ao catolicismo. Tem este plano suscitado grande controvérsia, sobretudo no que diz respeito à sua duração. Há quem o ache excessivamente longo e quem o ache excessivamente curto. Pela parte que me toca, não sei como determinar-lhe a exactidão ou a ausência dela. Do que ele significa aproximou-se o Dr. Azeredo Perdigão ao aludir a uma espécie de «jogo do sizudo». Para mim também é um pouco isso, somado à convicção de que a personagem
perde nobremente a cartada com o espectador, no único instante, ao longo do filme, em que solicita a sua participação.
João César Monteiro
Publicado no livro Morituri te Salutant. Edição & etc, Nov. 1974.