Prefácio do livro de poesia O Corpo Submerso de João César Monteiro publicado em 1959. Edição do autor.
NINGUÉM ESPIAVA E ILÍCITAMENTE APROVEITEI-ME, SURRATEIRO, DO PREFÁCIO
“Si es verdad que soy poeta por la gracia de Dios – o del demonio- también lo es que lo soy por la gracia del esfuerzo y de la técnica, y de darme cuenta en absoluto de lo que es un poema”—Federico García Lorca.
“… de darme cuenta en absoluto…” !…
A que ponto chegaria a minha presunção ao afirmar tal, agora, no ano verdade, e apenas dirigindo-se aos indefesos, um APRENDIZ- DE- POETA; todavia… não quero morrer agora sem ter a consciência absoluta do que é um poema. Não quero morrer agora sem ter a consciência absoluta ou não de muitas outras coisas. Não quero morrer agora até porque não quero com ou sem razões morrer agora.
Concluímos: só os SUICÍDAS querem morrer agora ou querem morrer antes ou depois de agora, aladamente, como que inventando um subtil- tempo- suporífero.
Não direi um apalavra sobre a minha poesia. Amanhã falaremos POESIA que nos será tão necessária quanto hoje. Disso dependerá a nossa LIBERTAÇÃO.
De mim cis o que esquemática, incompleta, mas não definitivamente será auto-dito.
Nasci há pouco menos de vinte anos à beira-mar ( donde esta nostalgia marinha). Nunca suportei cócegas.
Educação: Refractário a. Cavalo marinho com força repressiva. Inutilidade absoluta.
Brincadeiras preferidas: Atirar merda à cara das pessoas, atracção inocente pelo fogo ( não chegava a ser piromania) e, por vezes, partir vidros ou objectos utilitários.
Religião: Urinismo (Mijo foi o deus da minha infância). O ritual de caracter abertamente herético consistia em Mijar em igrejas e conventos.
Primeiro desejo sexual: Satisfeito no primeiro orifício ao alcance. A masturbação surgiu mais tarde, processando-se, com um elaboração de método mais completo e aperfeiçoado deste primeiro impulso.
Primeiro amor: Mas uma criança do sexo feminino, naturalmente!
Primeiro poema: Vide alínea anterior.
Único facto histórico (o porquê da minha imortalidade): A BARRICADA. ( Assim foi apelidado, contado e recontado e o será de geração em geração na história da cidade à beira- mar, até à consumação dos séculos).
Causas: oposição materna à minha visão cinematográfica de Os Tambores de Fu- Manchú.
Consequências: destruição total e violenta dos vidros s da canalização da água da casa paterna. Como consequência disto, e ameaçado com a intervenção de forças policias, surgiu, então, a necessidade da barricada, que culminou com a rápida e eficiente entrada m cena de uma alta personalidade (anos depois Presidente da Câmara) sendo definitivamente aniquilada no exílio de um mês ( para repouso e presumível tratamento) em casa de uns tios de aldeia, onde ainda decapitei com um aguçado machado uma boa meia dúzia de inofensivos cágados.
Tomaram parte na BARRICADA além de mim, sempre heróico de peito exposto às feras, nesse imorredoiro quarto com vistas para a rua e a porta obstruída pela cama, colchão, guarda-fato, penico ( se a memória não me trai),
Etc., uma bandeira nacional, duas espingardas, um revólver, muitas navalhas, muitas galinhas, vários mantimentos e uma cadela, o meu lugar- tenente, que inimigos meus diziam ser minha amante, o que é absolutamente falso e injurioso, dado que as nossas relações não passaram nunca de um plano de sólida , sã e fraterna amizade.
Muita gente que acorreu aos gritos maternos falhava entre si junto à janela, mas eu, ameaçador, espumando raiva, dispersei-a, assomando de revólver em punho e uma navalha atravessada nos dentes.
– Está louco! Está louco!—berrava a gente fugindo, precipitada, com os tornozelos agarrados ao cu.
E ESTARIA REALMENTE LOUCO?
Resisti, como já vimos, até à chegada do senhor que mais tarde seria Presidente da Câmara, não sem, quase, lhe ter enfiado os dois canos de uma espingarda pelos olhos dentro. NÃO ESTAVA, PORTANTO, LOUCO! QUE OUTRA COISA PODIA EU FAZER? QUE PENA NÃO TER ESTADO LOUCO!..
A minha infância morreu cruelmente. Renasci como Fénix das cinzas. Nada me foi legado pelo infante morto, que enterraram fundo e cobriram com rochedos ainda e gigantescos grilhões… …Doi tanto a reflexão e o peso exacto das coisas.
João César Monteiro
Prefácio do livro O Corpo Submerso de João César Monteiro, 1959. Edição de autor.