• soldados

    Portugal, cor, 16mm, mono, 25’ (1979)

    Um delírio seco, uma fábula de guerra. O filme se inicia num perfil mascarado de um soldado em meio à fumaça, a trilha sonora marchante e debochada agita o plano estático. Seguimos para planos de dois soldados solitários a caminhar por terrenos desertos, cobertos de folhagem ressecada. Aqui a edição de som é austera, ouvindo-se passos e silêncios, numa seqüência de caminhadas sem rumo, sob o som distante de disparos de armas de fogo. São dois desertores, e um deles sintetiza o motivo de sua deserção: “…o que importa é estar vivo!”. Seguem-se as caminhadas desse realismo monotônico, para, logo adiante, Monteiro nos trazer a ruptura: num gesto extremo, um dos soldados aceita ter os olhos arrancados pelo outro em troca de um “naco de pão”. De referência surrealista direta, misturando o absurdo-do-real da guerra a esses arroubos de fantasia, inicia-se o perambular do soldado cego, se arrastando sobre as pedras próximas a um riacho, se alimentando dos restos de pão que o outro lhe deixa. Diante da fome, do vazio do corpo, os olhos são sacrificados. E, a partir daí, o filme se encontra em verdadeiro delírio, fantasiando o lugar desse país estrangeiro não identificado (metáfora direta às guerras coloniais portuguesas), onde um soldado cego encontra uma árvore mágica, capaz de lhe devolver a visão e torná-lo rico! Um tom de fábula obscura toma o filme quando bonecos gigantes, música e alegria, invadem as ruas da pequena cidade desse suporto reino, comemorando a vitória sobre os “invasores” e o retorno do rei doente (salvo por um certo estrangeiro…). Os dois soldados se reencontram, e aquele que antes havia cegado o parceiro agora quer ser rico e importante como o soldado não-mais-cego (vestido de terno e maleta yuppies…). Seguem-se as festividades que anunciam a vitória desse “lugar distante” (que se aparenta mais com Portugal do que com terras africanas…), nos remetendo também à vitória dos próprios portugueses sobre os invasores espanhóis à época da fundação de Portugal, séculos antes – misturando-se assim invasores e invadidos num mesmo festejo. Cria-se esse enredamento, um redemoinho, onde vitórias e derrotas portuguesas marcadas na história parecem estar misturadas, de ponta-cabeça, e não há referências que justifiquem qualquer ação: seja a guerra, seja a derrota, seja a vitória, seja a festa. Ao ver seu ex-colega enriquecido, o outro soldado sai em busca da árvore milagrosa, desse “El Dorado” que resolveria todos os seus problemas, e acaba sendo morto no lugar do amigo. Uma fábula ácida, uma crítica poética às guerras coloniais portuguesas e uma afronta direta às supostas razões e espíritos nobres das batalhas – transformadas aqui num delírio de poder e dominação, encenada em tom de teatro filmado e falas mais “citadas” do que ditas (os atores, por vezes, nos lembram fantoches). Ao final do filme, o que resta, é um quase nada que se possa ser dito: voltamos a um close-up do soldado por trás da máscara de gás, encarando a câmera por um longo minuto (os olhos por trás de visores embaçados), sob a trilha sonora marcial e as nuvens de fumaça que tomam a imagem, vindos daquele (e de tantos outros) campo de guerra. Talvez o filme de discurso mais diretivo da obra de João César Monteiro – ainda que bem distante de qualquer “ideologismo” de prateleira, como bem convém ao sentido de liberdade, presente em toda a sua obra. —Contracampo

    Ficha Técnica

    Realizaçao e Argumento: João César Monteiro, secondo un racconto tradizionale popolare portoghese (tratto dalle versioni curate da Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira in Contos Tradicionais Portugueses e da Contos Tradicionais Portugueses di José Leite Vasconcelos in Etnografia Portuguesa)

    Directore da fotografia e director de produçao: Manuel Costa e Silva

    Som: João Canedo

    Musica: La storia del soldato e La marcia del soldato di Igor Stravinsky; musica popolare di Trá-os-Montes

    Produçao: João César Monteiro per la RTP

    Assistente a realizaçao: Margarida Gil

    Assistente a fotografia: Emílio Pinto

    Assistente a produçao: Rui Alves