14-17 de Setembro de 2011
http://lusitag2011.univie.ac.at/pt/secoes-abstracts/secao-7/
Terras em Transe – Éticas e Estéticas nos Cinemas Lusófonos
- sobre João César Monteiro -
Participantes:
Catarina Maia (Coimbra): «Nenhuma ordem é aceitável se não for uma ordem fílmica»
Lúcia Nagib (Leeds): «O autor auto-performático: Ética em João César Monteiro»
Liliana Navarra (Lisboa): «A trilogia de Deus: a ética social de um individuo no limiar da sociedade»
Abstracts:
Catarina Maia (Coimbra)
Nenhuma ordem é aceitável se não for uma ordem fílmica
A obra de João César Monteiro oferece uma recusa ao ilusionismo naturalista, ao jogo convencional em que o espectador esquece que está perante uma ilusão. Há no autor um absoluto radicalismo ético: “o cinema (…) só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência”. Influenciado pelas teorias bazinianas e pelos Cahiers du Cinema, Monteiro segue a linha de um cinema autoral. A par de uma evidente relação privilegiada com a autonomia do real, com o que pré-existe e que a câmara regista, dá-nos a fascinante percepção de que os seus filmes são a memória de uma fixação que devolve não a realidade mas as suas próprias fixações perante esta. Isto resulta da incorporação complexa e ambígua do real que é feita numa linguagem, por uma técnica. Tal como dizia Bazin, “toda a técnica remete para uma metafísica”. Nesta apresentação quero explorar os modos como na obra de Monteiro essa ligação da técnica com uma ética fílmica é determinante para a compreensão dos seus filmes.
Lúcia Nagib (Leeds)
O autor auto-performático: Ética em João César Monteiro
Neste trabalho, irei enfocar uma seleção de filmes dirigidos por João César Monteiro que se prestam à definição de ‘autobiográficos’, entre outros motivos, por serem protagonizados pelo próprio diretor. São eles: a ‘trilogia de João de Deus’, composta de Recordações da casa amarela (1989), A comédia de Deus (1995) e As bodas de Deus (1998), além de Le bassin the J.W. (1997) e Vai e vem (2003). Minha escolha se deve menos à suposta representação na tela da vida real do protagonista do que à apresentação do contingente histórico que ocorre nestes filmes de maneira simultânea à sua produção, isto é, ao fato de que o diretor provoca os eventos fílmicos, tanto quanto possível, no mundo objetivo. Ligado como poucos ao realismo fenomenológico baziniano, Monteiro é, porém, ao mesmo tempo, um adepto fiel do realismo do dispositivo cinematográfico. Defendo a hipótese de que o uso de tais procedimentos deriva de uma ética, conceito este que irei testar, com relação à obra monteiriana, através da análise do gênero autobiográfico, das prerrogativas autorais e do realismo de cunho tanto fenomenológico quanto auto-reflexivo, no interior e para além do contexto representacional.
Liliana Navarra (Lisboa)
A trilogia de Deus: a ética social de um individuo no limiar da sociedade
João César Monteiro foi um dos maiores realizadores cinematográficos da vanguarda portuguesa dos anos 60, conhecida por “Novo Cinema”. Controverso, este enfant terrible do panorama cultural português foi sempre considerado pelos media e pelo público uma figura provocadora, uma porta aberta ao escândalo. Mas além de cineasta, João César Monteiro foi também um grande escritor, um alquimista de palavras, conseguindo misturar magistralmente a linguagem erudita aos ditados populares. As indecências e as vulgaridades transformavam‐se, através da sua caneta, em delírios poéticos. Atrás de cada palavra, de cada estratagema estilístico, escondia‐se um autor não compreendido, que só uma visão abrangente da obra poderia revelar inteiramente. O cinema era o meio através do qual conseguia canalizar a sua infinita cultura, sendo disso prova evidente as frequentes citações literárias. Como afirma Vítor Silva Tavares, editor de &Etc e seu grande amigo “João César era un grande poeta (…) o maior escritor português do século XX”, ”apetece dizer que os filmes do César são mais “escritos” (ou “escritas”) do que as suas representações, ou ilustrações, audiovisuais.” Os seus textos eram exemplo de grande maestria linguística – “alquimie du verbe”, come diria Rimbaud. As palavras, que extrapolava sempre dos textos em língua original, eram continuamente remexidas, incluídas em contextos plurívocos e diferentes da fonte textual originária, uma verdadeira operação de descontextualização. Este processo permitia‐lhe criar novas cosmogonias linguísticas no seu universo pluridiscursivo, oferecendo olhares diferenciados e várias interpretações verbais sobre o mundo que o rodeava. Mas Monteiro, em vez de promover um ensaio escrito, preferiu utilizar como metalinguagem a linguagem cinematográfica. O que se quer aqui apresentar são três exemplos de filme‐ensaio (Recordações da Casa Amarela, A Comédia de Deus e As Bodas de Deus) onde o realizador nos quer propor uma reflexão sobre o seu mundo urbano, sob a efígie do excesso e do voyeurismo, através de uma personagem que consegue ao longo da trilogia vestir a pele do pobre, do sem abrigo, do vendedor de gelados, do rico latifundiário, do prisioneiro e do doente mental. Na representação dessas personagens há um profundo conhecimento da sociedade e das suas várias facetas. Os filmes de João César Monteiro, portanto, podemser vistos como verdadeiras análises sociológicas da realidade portuguesa pos‐fascista.
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