• 14Out

    “João César Monteiro odeia espectadores. Em compensação, exige cúmplices.” E é aqui que bate o ponto. Final.

    Naquele seu dele estilo castigado por ser estilo e não língua “de madeira” (salvé, Mário Dionísio!), escreveu Luiz Pacheco na revista “Blitz” de há uns catorze anos uma artigalhada sobre “o senhor Joãozinho das comédias”.

    Na altura, ao começar a ler a coisa esperei o pior, dado que outra coisa não era de esperar: Luizinho e Joãozinho – reparem nos diminutivos carinhosos – não morriam de amores um pelo outro, rosnavam-se, quiçá devido à mútua, feroz concorrência nas andanças da má vida como nos embates da má-língua – ora agora ferras tu, ora agora ferro eu, ora agora ferras tu mais eu. Uma ternura.

    Vamos porém ao que importa, se é que importa: na referida artigalhada começa o Pacheco por nos contar ter ido ao Jumbo de Setúbal ver “A Comédia de Deus”. Divertiu-se “a valer” pelas “horinhas de distracção e riso”, sendo que, ao intervalo, repara que além dele só estavam na sala duas senhoras. Mau Maria, vem aí bordoada.

    Linhas abaixo, confirmação: “Tá boa! É a segunda vez que me acontece. Sabem? Aqui há anos fui ao Fórum Picoas ver um filme deste gajo… uma merda! ‘Recordações da Casa Amarela’…”

    Outra sala vazia, ou, melhor para pior, na sala o Luizinho e, à porta, a arrumadora a quem o pagante não se conteve de dizer: “minha querida senhora, uma sessão privada, especial, só para mim, e por 300 paus, é baratíssimo, é de borla.”

    Mas “não nos precipitemos”, cito e corroboro. É que, contra aquilo que de passo se poderia prever, sai-se o Pacheco com esta, que valeu na altura e mais vale agora, nestes tempos de estrondosos sucessos de público que feitas contas não dão para Gambrinus de produtores e demais pessoal: “Duas salas de cadeiras sem ninguém sentado, quererá dizer alguma coisa transcendente? esquisita? algo que nos indique a medida do valor do filme, da capacidade gustativa da inexistente assistência? Nem pouco nem muito, pensando bem.”

    Bem pensado, penso eu. E embora ele confesse “nada perceber de cinema” (como eu não percebo e já agora também o Joãozinho, esse mesmo, que tal o confessou algures para se demarcar dos inteligentes de serviço), dá-se a explicar: “Mas João César Monteiro aplica-se a fazer filmes, em português. Lisboetas, principalmente. Lida com coisas e gente nossa, anda pelas ruas de Lisboa. Fala, pois, comigo. Dá-me notícias de mim. Não quero saber para nada quem pagou, quem vai ver ou não vê, o que dizem os jornais. As doutas sentenças dos jurados em Veneza, Cannes, o raio. Prémios assim ou assado, em cacau, taças, globos ou apenas farófias de compensação, consolação, marquetingue. Há por esse lado, mistérios.”

    Disse ele. Para mim, nem por isso. Veneza, Cannes, Berlim, o raio, sempre estão um pouco mais longe (horizontes mais vastos) que Badajoz, que é aonde poderão chegar, se lá chegarem, os estrondosos sucessos de público a que o estardalhaço mediático nos vai habituando, martelando. Isto porque os ditos, cavalgando a onda do que “está a dar” (nas telenovelas e nos seriados; na jornalada e nas revistas pimbas que vocês conhecem) macaqueiam, em pindérico fosforescente por “bela fotografia”, actores agindo “como na vida real”, tão “naturais”, e outras similares banalidades “técnicas”, aquilo que o mais corriqueiro cinema comercial americano (que é também, no género, o melhor do mundo) faz com uma perna às costas e com isso ganha uma pipa de massa, boa pança lhe faça – até rima.

    Acrescente-se: tal cinema passa por Hong Kong e Sidney, Ilha Maurícia e Belém do Pará, vê-se em Badajoz e entra por aqui dentro como tsunami, tudo inundando como típico exemplo do imperialismo ianque e da concomitante lavagem às monas que nada têm para lavar – aqui sob o signo da diversão, da escapadela às tristezas desta vida, ai.

    Talvez porque nada perceba de cinema e continue a gostar de dar pulos na cadeira frente à pantalha, como eu puto no Paris ou no Cinearte a beber fitas de cowboys e de batatada, frequento sempre que posso alguma dessa fitalhada avassaladora, descansem, estou vacinado. Isto não quer dizer que ao contemplar as estrelas que os entendidos conferem a outras cinematografias mais exigentes, logo, “indispensáveis” (à cabeça, a francesa, oui) não vá lá espreitar, a ver se não morro tão burro como vim ao mundo. E – ai, meus senhores! – não raro saio para a rua com uma grande cachola e a dar o meu pobre dinheirito e o meu rico tempo por muito mal empregados, duas horas que parecem vinte a gramar patetices empoladas que não ouso recomendar ao meu pior inimigo, seja ele ou tivesse sido a prestações o Pacheco que já lá vai, cantando e rindo. Culpa minha: com esta provecta idade e com este passado pouco recomendável (sim, também eu já fui assim a modos de “crítico de cinema”, estava disponível e lia os “Cahiers” e a “Positif”, esta mais política e a meu gosto ou panca surrealista), quem é que me manda a mim continuar a contemplar o céu estrelado dos conhecedores?

    Separação de águas (nada de equívocos a somar aos do pão nosso de cada dia): apesar da linguagem plebeia, tão nos antípodas daquelas esplendorosas de D. Francisco Manuel de Melo e de Vasco Graça Moura, sou dos que não confundo fitas e filmes, como, nestes, não confundo emanações de espíritos letrados a ponto de meia-dúzia de citações por centímetro de película com a originalidade – essa que entra literalmente pelos olhos dentro – dos criadores, com suas idiossincrasias, fobias, manias, seus ódios de estimação, suas paixões de cair à cova, suas incandescências, seus fulgores, e também seus estampanços, seus vôos sem rede, suas merdas que até essas se não devem confundir com as merdas alheias, têm copiraite exclusivo.

    De aí, e logo na madrugada de nosso senhor Monteiro em “cineasta”, ter eu vestido a camisola do Águia, passe a metáfora predadora. O mau-feitio (isto é: o ter feitio) do artista quando sempre jovem cão danado quadrava-se com certas coisas que eu terei pudor de contar seja a quem for, obrigado José Régio. No entanto, levante-se um pouco o véu: coisas assim tecidas de raiva e asco por manifesta impossibilidade de arrojos mais puxavantes.

    Retomando o cherne pachecal (que me está a dar o jeitão por vós já apercebido), a alturas tantas da surpreendente croniqueta lê-se isto: “Ora: João César Monteiro não tem nada de parvo. Reconheço e desde há muitos anos [mentiroso! - V.S.T.] que ele é um tipo muito inteligente, arguto, ambicioso. Não lhe faço nisto favor nenhum. Portanto e digamos: nada do que ele faça ou escreva ou diga (e tem uma linguiça de Oiro!) é inocente ou é palerma ou descuidado. É, sempre e muito, calculado, premeditado, ÚNICO. Não adianta a hábil confusão que é misturarem aqui os termos ‘genial’ e ‘louco’, como me calhou ler por aí.”

    Tirando o “calculado” e o “premeditado”, que também constam, a par de um automatismo gerador dos efeitos-de-surpresa tão do agrado de surrealistas e demais desinstalados das artes contemporâneas, susbcrevo conforme e reponho em circulação, se chegaram até aqui.

    Mas o melhor está para vir. Com particular acuidade (ou não tivesse um faro de perdigueiro apenas obliterado, quanto a mim, quando cheirou as “Recordações da Casa Amarela” julgando que estava a cheirar o cu de um magala), acerta o Luiz na mosca ao afirmar: “o César Monteiro não faz (mesmo que assim as intitule) comédias. Farsas farsalhonas e idiotas, como “O Pai Tirano”, ou quejandos. Ele não ia perder tempo com isso.”

    De facto: tinha mais que fazer, e de mais sustância. Por exemplo: chicotear, à Sade lisboeta, a tacanhez moral e mental que é o ovo da serpente fascistóide; arremessar às ventas de uma sociedade ora pedinchona ora arrogante o seu dela retrato asqueroso, toma lá a ver se gostas.

    Quase ao fecho da crónica da “Blitz” de 1996, Luiz Pacheco, em dúvida, lança duas interrogações pertinentes: “será, porém, que ele guarda no íntimo um enorme desdém, rancor, nojo, por todos nós, seus compatriotas de nascimento e contemporâneos de desgraça? Ele faz (mera hipótese) filmes como quem nos cospe?”

    Bingo, Luizinho! Se ainda por aqui palmilhasses a chatear meio mundo com o teu obnóxio talento, eu pedia-te, venerador e obrigado, que retirasses os pontos de interrogação. Com uma ressalva: o nojo do teu estimado (risos) César Monteiro não era extensível a “todos nós”. Sobre esta questão tive eu há pouco o ensejo de opinar preto no branco: “João César Monteiro odeia espectadores. Em compensação, exige cúmplices.”

    E é aqui que bate o ponto. Final.

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    [Vítor Silva Tavares, Ípsilon (suplemento do Público), 10/03/2010]

    http://ipsilon.publico.pt/artes/texto.aspx?id=252379

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